Monforte do Rio Livre, Vilar da Amoreira, Barca do Bispo, Foz do Dão, Breda, Vilarinho das Furnas. Nomes de aldeias que partilham o facto de, submersas pela água das barragens, destruídas para construir cidades ou dominadas pela força da natureza, terem desaparecido dos mapas portugueses ao longo da história.
Por outro lado, há aldeias que, com menos de 1000 habitantes e longe do apelativo litoral, possuem a garra da irredutível aldeia de Astérix, Obélix e Cia., tendo a capacidade de recriar, a espaços, o frenesim das grandes cidades, sem com isso perder a sua essência. É o caso de Cem Soldos, aldeia a menos de uma mão cheia de quilómetros da cidade de Tomar que, à boleia do Bons Sons, festa dedicada em exclusivo à música portuguesa e montada por uma aldeia inteira – e também alguns voluntários -, passou a ser paragem anual obrigatória para muitos festivaleiros.
Após dois anos de pausa forçada, o Bons Sons voltou ( de 12 e 15 de Agosto) a habitar as ruas de Cem Soldos. Uma edição – a 11ª – que contou com 47 concertos, 50 espectáculos e actividades especiais, num conjunto de 300 artistas. Ao longo de quatro dias, dois deles com lotação esgotada – notou-se algum aperto, é verdade -, Cem Soldos contou com 33.100 visitantes, o que fez desta uma das edições mais participadas da sua história. Tão participada que, no último dia, já nem farinheira havia para cozinhar um pão que, por si só, merecia uma visita. Como diria Jacques Tati, Há Festa na Aldeia a cada um dos regressos. Vemo-nos em 2023, Cem Soldos. Isto se não for antes.
Apontamentos musicais
Ainda só mostraram ao mundo meia dúzia de singles mas, por esta altura, já não é arrisacdo dizer que os manos Filipe e André Cameira são os primos tugas dos Jungle. O final de tarde do primeiro dia do Bons Sons foi vivido, à pala dos Motherflutters, com o espírito de um Lux Frágil em hora de ponta, contando com a benção da disco, o sobressalto do funk e o balanço da pop. A ser uma história infantil, foi como presenciar a recriação do Flautista de Hamelin (mas sem afogamentos). Venha de lá o disco de estreia.
B Fachada, o último bardo português, trocou o frenesim dos teclados pelo dedilhar da braguesa e da eléctrica, juntando o rugido de alguma maquinaria para assinar, dizemos nós, um dos grandes concertos desta edição dos Bons Sons. B tocou “Rapazes e Raposas” quase de uma ponta à outra, reafirmando ser um anti-tudo, elogiando os herbívoros, fazendo um manguito a todos os lambe-cus da vida e lembrando, qual personal trainer ou mestre zen, que “a vida não é só, ou de pipis ou de pipocas”. Fachada não é grande: é enorme.
Omiri continua na estrada a dar tudo no seu trabalho etnográfico, agora com uma viagem por Cem Soldos que se viu projectada na fachada da igreja, num concerto que terminou, quase de lagriminha no olho, com um coro popular a entoar a tradicional alentejana “Dá-me uma gotinha de água” em fim de festa. Foi bonito, pá.
Como cresceu esta Criatura desde a primeira visita a Cem Soldos, então com o Cante Alentejano em grande após a sua imaterialização. Acompanhados pelo Coro dos Anjos, e sempre na presença de poesia, palavras de ordem e bocas contestatárias, a Criatura ofereceu um concerto com um tremendo lado cénico, recordando-nos, tal qual Henry Thoreau e a sua Desobediência Civil, que por vezes é preciso enfrentar a vida com um Bem Bonda.
David Bruno, embaixador acidental de um empreendimento chamado Inatel, não precisou de tacinhas de açaí ou pralinés para domar um público que, em quantidade apreciável, sabia trautear de trás para a frente hinos tão castiços quanto Salamanca By Naite, Bebe & Dorme ou N Gosto K M Mentem. A ajudar à festa esteve António Bandeiras, que fez elevações numa estrutura metálica, tocou solos imaginários e ainda arriscou o crowd surf. Gritem todos: Gondomar! Gondomar!
Os Bateu Matou praticamente fecharam a loja e o festival, com aquele que terá sido o mais ginasticado dos concertos desta edição, a meio caminho entre um recital de percussão, um frenético DJ set e um arraial popular – mas trocando as sardinhas e os manjericos por sangria de melão. Não tenham dúvidas: os Bateu Matou são a banda que todos gostariam de ter a tocar no seu casamento. Um festão.
Fotos do ambiente: Luísa Velez
Fotos dos concertos: Carlos Manuel Martins e Diogo Costa
Sem Comentários