”I am a birdcage without any bird,
A colar looking for a dog, a kiss
Without lips; a prayer lacking any knees”*
“Oração a que faltam joelhos” (Porto Editora, 2020), romance de Jacinto Lucas Pires, será título capaz de fazer virar cabeças, se com ele nos cruzarmos numa qualquer estante por aí. Se o abrirmos, ficamos também intrigados e agarrados ao poema* com que, misteriosamente, começa este relato – e, tal como a protagonista, acreditar ainda mais na premissa: “Não me ocorre que a literatura possa ser não um modo de estar mais presente no mundo, mas uma forma de distracção, de acalmia, de preparação para o sono, uma arma para sonhar”.
Kate, uma rapariga de pés e tornozelos demasiado pálidos, sonha que é perseguida de forma exagerada e cinematográfica, como quem precisa de encher “uma casa toda futuro”, agora apenas cheia de sombras de uma mãe falecida antes do tempo e de um pai perdido na espiral do esquecimento feita rio. Sobra-lhe um redemoinho de notícias de um mundo em convulsão, tão parecido com a própria adolescência que experiencia entre luto, mudanças, viagens de autocarro, livros de Bolaño, Borges, Delillo e Ginzburg e uma mão cheia de «Nomes», que se cruzam com ela e lhe definem os contornos.
Contornos esbatidos, desde cedo, pelo fantasma da imigração, e por referências tão vastas quanto o Oceano que separa a América que habita e a viu nascer e uma Europa que a família deixou. Sozinha, tenta remarcar esses contornos a tracejado duplo, por uma consciência reivindicativa que herda do que lê e que esbarra numa sociedade cravejada de contrariedades e palavras aberrantes.
“Este era o ano em que os EUA começavam a implementar o chamado programa do Novo Zoneamento Americano, e o propósito de Las Salvajes era que a literatura encontrasse formas de entrar no mundo para contrariar aberrações como esse plano de deportação (…) Palavras que furassem páginas, ecrãs, imagens, para fazer estragos na vida. (…) Este era o tempo em que as potências mundiais voltavam a brincar com a ideia de um apocalipse. O tempo de mares galgando zonas costeiras, desatualizando mapas.”
Um jogo de azar, drones sobre as nossas cabeças, dia sim, dia sim. Discos cada vez maiores e mais silenciosos, como jurássicos insectos do futuro. “Apocalipse, êxodo, peste. Um mundo perplexo onde renascia a velha linguagem, à falta de outro milagre”.
Cátia, Kate, Kay ou K, acreditava na força da revolução pelas palavras ou na força das palavras feitas revolução. Para melhor se conhecer e desabrochar, e mesmo sem qualquer planeamento, as suas dúvidas vão ganhando geografias à medida que deambula, e “snifa nas entrelinhas” de cada lugar – seja uma cidade, uma pessoa ou um livro.
“Estava sentada na cama, demorando-me naquela calma estranha que vem depois de um ponto final, quando os nossos olhos, carregados de imagens se deixam cair no espaço em branco da página, e ele entrou cheio de tralha, papéis, computador, casaco, sujando de mundo o silêncio que eu vinha construindo há horas. Uma simetria curiosa, como se o meu eu-de-manhã-na-cama fosse a capa, o meu eu-à-noite-na-cama fosse a contracapa, e o dia inteiro naquele quarto, Os Nomes.”
Aumentando a biblioteca pessoal e o cardápio de sonhos visionários, a detective selvagem Kay vai recusando alguns “talvezes”, mas não renega a bolha da autoconsciência em que caminha. Uma viagem no presente, no aqui-e-agora, movida pelo seu próprio vento: a escrita.
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