Desde “O Meu Nome é Lucy Barton” que descascamos esta família, evocando um passado por vezes turbulento, outras enternecedor e, tantas outras, ferida aberta e ponto nevrálgico de um presente que se julgava sarado e emocionalmente estável. No entanto, perante o terceiro divórcio de William e a viuvez de Lucy, o que é que pode estar estável quando a mais profunda reflexão sobre o futuro os sobressalta a ambos?
“Por vezes, durante o nosso casamento, eu detestava-o. Percebia, com uma espécie de peso de pavor no peito, que, com o seu distanciamento afável, as suas expressões brandas, ele não estava disponível. E era pior do que isso. É que, por baixo dessa afabilidade, espreitava uma irritabilidade pueril, uma zanga que lhe tremeluzia na alma, um menino gorducho com o lábio inferior espetado para fora que culpava os outros (…) culpava-me a mim.”
A voz é a de Lucy, infantilizando William, para pouco depois se retratar igualmente pueril e irritada, assustada, uma mulher que confessa a dificuldade de chorar: “O meu choro assustava-me muito (…) grandes soluços arquejantes de criança» – soluços com os quais William sempre soube lidar. Desde cedo percebemos que ambos calam coisas, embora a urgência do choro os assalte e seja por vezes incontrolável. Tal como o são as coisas que os assombram, não obstante terem construído sobre elas as suas vidas, camada após camada, explorando a invisibilidade que Lucy Barton confessa, espetando tacha atrás de tacha, viciando o leitor nesta saga familiar.
“Sempre pensei que, se houvesse um grande quadro de cortiça e se nesse quadro houvesse uma tacha por cada pessoa que já viveu, não haveria uma tacha para mim. (…) Oh, nem sei o que dizer! A sério (…) Sinceramente não sei o que dizer, a não ser que, a um nível qualquer fundamental, me sinto invisível no mundo.”
Dessa invisibilidade – e não só – resulta uma haste partida, uma parte murcha que Lucy não recuperou, como não recuperou da infância isolada, perdida. Disto se vai dando conta quando se perde em reflexões, que lhe resignificam verdades que julgava absolutas sobre o seu casamento.
“Lembro-me de (…) eu comentar com uma amiga: «É como se eu fosse um peixe a nada às voltas e voltas e, de repente, tivesse esbarrado no William, uma rocha».” E bem sabemos que as rochas não mudam de sítio. Há a opção de extravasar, transbordar e galgar-lhes por cima, contorná-las incessantemente ou, simplesmente, fugir. O que não é tão simples assim, daí a força que encontramos nas narrativas de Elizabeth Strout e neste “Oh, William!” (Alfaguara, 2022), que tanto iluminam e esclarecem como deixam o leitor perante “um campo de embotada e aterradora tristeza”, cruzando histórias e aflorando emoções.
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