Paulo Piconegro é dono, é amargo e só lhe falta o chicote. Wakaso é um negro colossal, agrilhoado à tarefa da criação. Maria do Socorro é a mais bonita e talvez por isso escrava sexual do patrão. A escravatura é o negócio mais praticado no Bar Mitzvá. Nas posturas mansas e servis, encontramos pessoas vergadas à vontade daqueles que pagam, servindo-lhes como objectos dos prazeres mais diversos daqueles que, misantropicamente, os oprimem. Para completar o cenário temos em pano de fundo O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosh, que dá o toque final do inferno vivido por estas personagens. Ainda assim, o humor peculiar e sinistro pauta também as páginas deste “Macaco Infinito” (Quetzal, 2016), de Manuel Jorge Marmelo.
“Parece que Piconegro tem algum prazer na deficiência e que escolheu viver numa cadeira de rodas apenas com o intuito de justificar ou amortecer as consequências (…) Se pudesse decidir, o criado preferiria que Piconegro sofresse de hemorróides e que o cu lhe inchasse e sangrasse na cadeira (…) que estar sentado e imóvel, (…) se transformasse num tormento constante.”
Circunscrito ao bordel, a acção toma muitas vezes contornos do macabro, alimentando desejos facínoras e violentos, ao ritmo do matraquear da máquina de escrever, que debita enredos indecifráveis, como aqueles que habitam as cabeças dos que lá vivem aprisionados.
“Na minha terra punham-se uns nos outros em qualquer canto e sem preliminar nenhum (…). Nas cidades é diferente. O instinto é o mesmo, mas é necessário o romance e a sedução, há protocolos a seguir, preâmbulos. Em caso de absoluta necessidade, (…) existem sítios como o Bar Mitzvá, onde é possível dispensar todos os artifícios da civilização, da urbanidade, e ir directo ao assunto, (…).”
Visivelmente, o autor deseja colocar em debate o processo de criação, mas também o espaço que o acaso e o improviso têm, juntamente com os desejos e preocupações de cada um, em contrapartida com o espartilho que a sociedade representa e uma luta contra o quanto somos manipulados por vários tipos de “patrões”. No final, talvez fique a ideia, uma mentira piedosa, que nos sussurra ao ouvido: somos todos capazes.
“Quando tenta suprimir o papel que lhe cabe nesta farsa, Wakaso recorda muitas vezes a frase do livro que o padre Anton lhe lia (…).
Abdul Majeed Wakaso sente muitas vezes o desvario vital daquelas frases percorrendo o seu corpo (…). Aperta com força os dedos de ambas as mãos, cerra-os até serem uma máquina capaz de bater e matar (…).
(…) e recorda-se de ter gesticulado para perguntar a Damião Viriato o que vinha a ser aquele viajar sem sair do sítio.”
É este poder da literatura, o de salvar, curar, fazer levantar voo, que Manuel Jorge Marmelo invoca, mesmo que se socorrendo da aspereza da realidade.
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