Será prosa? Será poesia? Uma biografia não é, certamente. E a prosa não bate assim. “Gritos da Minha Dança” (Abysmo, 2020 – reedição) possui o ritmo de uma crónica e a fluidez de um ensaio pessoal, embora, no seu todo, fuja ao jugo de um só género literário. Nestes textos aparentemente soltos e desordenados, cabe o recheio de uma vida — memórias, sonhos, desilusões, e também versos, contos e anedotas.
Conforme indica o prefácio de Rita Patrício (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), este livro “colige textos de géneros e registos discursivos muito variados”. Embora não seja inteiramente autobiográfico, “Gritos da Minha Dança” é um convite à descoberta da personalidade, crenças e valores que, desde a infância até à velhice, moldaram a vida e obra de Fernanda Botelho. “Ter setenta e cinco anos, andar a passo lento, um tanto curvada e, como retoque final, apoiada numa bengala – eis como me vê quem não me conhece”, desabafa a escritora.
Maria Fernanda Botelho de Faria e Castro teve no Porto as suas raízes e em Lisboa “as folhas, as flores, os frutos”. Nascida em 1926, estreou-se como poetisa mas foi através da prosa que se afirmou no mundo das letras, tendo escrito, entre outros, os romances “Esta Noite Sonhei com Brueghel” (1987) e “As Contadoras de Histórias” (1998), que venceu um Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores. “Gritos da Minha Dança”, cuja primeira edição data de 2003, foi a última obra da autora, que morreu em 2007, aos 81 anos.
As palavras foram as fiéis companheiras da vida de Fernanda Botelho, com as quais ousou “procurar a quadratura do círculo ou a pedra filosofal”. No decurso da sua jornada, a autora encontrou o tesouro do léxico português e um estilo literário singular repleto de jogos de palavras, aliterações e “divertidos pensamentos aforísticos”. Seja o tema a metafísica, a eutanásia ou o Big Show SIC, as palavras da escritora bailam elegantemente sob os holofotes dos textos que compõem “Gritos da Minha Dança”.
Fernanda Botelho definiu o seu derradeiro livro como um conjunto de “reflexões de uma septuagenária ímpia escritas antes de súbita e suspeita morte”. Contudo, esta antologia assume um propósito de maior relevo, pois apresenta a ponderação e lucidez de quem traz ao palco, por uma última vez, uma extraordinária coreografia.
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