Longe vão os tempos em que, acompanhada à guitarra, Rosalía mergulhava sem grandes transgressões na tradição e cruezas do flamenco. “Los Ángeles”, disco de estreia lançado em 2017, ofereceu-nos uma viagem encantada por entre flamenco, tangos, tarantas ou malagueñas, assinalando o ponto de partida para a (sua) reinvenção da música espanhola – que chegaria, um ano mais tarde, com o genial “El Mal Querer”. Um disco que casava, com provocação, estilo e muito talento – valeu-lhe um Grammy e sete grammys latinos -, a tradição do flamenco com algumas das mais inventivas sonoridades do século XXI.
“Motomami”, o terceiro capítulo escrito por Rosalía, elevou ainda mais a fasquia, a começar logo pela capa, na qual a cantora recria, com louvável despeito, O Nascimento de Vénus de Botticelli. Representando a dualidade entre o lado maternal e um outro mais dado à revolução, “Motomami” põe em conflito géneros musicais que dificilmente se sentariam na mesma mesa – ou que, mesmo depois de aviarem uma bandeja de shots, dificilmente seriam tentados a partilhar a mesma cama.
Rosalía é uma performer excepcional, dona de uma sensualidade que vai muito para além do que a indústria tem vendido, ao longo dos tempos, como sendo o padrão da feminilidade – o que dizer daquelas unhas orgulhosamente mal cuidadas? No Primavera Sound Porto 2023 (8 Junho) a catalã assinou um concerto memorável, daqueles a que a expressão “tudo certo” assenta melhor que um fato feito à medida. Houve tempo para andar de trotinete, molhar o cabelo ou sentar-se numa moto feita de braços e pernas, com uma filmagem que nos levou a conhecer por dentro uma etapa do MotoGP.
Um concerto que conseguiu espremer o melhor de dois mundos: o do espectáculo old school, com mudanças de cenário, bailarinos de excelência e coreografias primorosas; e o do mundo actual e fragmentado, com uma filmagem feita in your face, entre câmeras go pro e realizadores dedicados – entre os quais a própria Rosalía -, que conferiram um lado insta, publicável, partilhável e, sobretudo, intimista, a um concerto feito para multidões. Somos todxs Motomami.
Notas breves
Imaginem Ibiza mas com mais estilo e ainda melhor música. Foi mais ou menos nesta vibe que Fred again… chegou ao Primavera e triunfou sobre a tempestade, numa ode amorosa à música electrónica com todo o calor da house music e a precisão certeira dos samples. Ver Fred Gibson a dar tudo na sua caixa de loops e batidas foi como ter outra vez cinco anos e regressar ao parque infantil. Porto, are you with me?, perguntou-nos a certa altura. Carago, então não?
Os Japanese Breakfast de Michelle Zauner soaram, a certa altura do concerto no Primavera, como uns Cigarettes After Sex em versão indie, num concerto em crescendo que terminou em altas. A voz de Michelle não esteve tão certeira como em disco, algo compensado com uma química que deixaria orgulhosa qualquer tabela periódica. Era juntar-lhe uma sopinha Misou e a coisa teria sido perfeita.
Os Alvvays estiveram claramente uns furos acima da pálida prestação em Paredes de Coura, e até dedicaram, com aquele seu humor tímido, um tema a quem então lhes disse que teriam de engomar melhor a sua roupa. Fim de tarde perfeito que confirmou que “Dreams Tonite” continua a ser o melhor dos hinos.
Fotos: Hugo Lima
Sem Comentários