Pilar Quintana, conceituada autora colombiana, venceu o Prémio Alfaguara Romance 2021 com este “Os Abismos” (D. Quixote, 2022). A sua primeira obra lançada em Portugal foi “A Cadela”, romance finalista do National Book Award nos EUA em 2020 e amplamente aclamado a nível internacional. Hector Abad Faciolince lança, sobre estes Abismos, o seguinte comentário: “De que abismos de aproxima uma menina ainda atónita dos mistérios da família e do mundo? O seu andar é uma selva, o seu lar um supermercado, o seu país umas montanhas cobertas de neblinas que escondem precipícios“.
É assim que o leitor se aproxima deste romance: pela mão de uma criança, que recebeu o mesmo nome da mãe – Claudia – e que diz pouco distinguir esta das plantas que povoam o apartamento. A selva, sempre a selva: “Achei sempre que aquela selva eram os mortos da minha mãe. Os seus mortos ali renascido“. Por isso, embora vegete de vez em quando, a mãe também brilha e surge vistosa, como a selva. O pai, por sua vez, é indivisível do supermercado que gere (com a irmã), não havendo lugar a folgas ou férias. Um homem aparentemente justo e recto, mas que sabe mimá-la. Aliás, a ambas as Claudias.
Há, ainda, a tia e uma boneca de proporções humanas, que assume muitas vezes o lugar que Claudia precisa ver ocupado. Entre tardes no supermercado, a escola e as crises da mãe, que agarrada às revistas lhe mostra tantos outros abismos – flagelos sociais, suicídios (ou mortes misteriosas, assim a mãe desconfia) – e crises que misturam violência, desejo e fragilidades dos adultos com a inocência e os medos da infância, Claudia compõe um labirinto, nele se perdendo muitas noites enquanto tem pesadelos: “Lá fora o mundo parecia um gigante adormecido, tendo o som do mar por respiração. Cá dentro tudo eram sombras, as nossas silhuetas e as dos móveis mais negras do que a escuridão. (…) Fizemos o caminho para casa em silêncio, como se fôssemos para um funeral. Só que o nosso silêncio não era triste, mas áspero. Eu não me atrevi a tirar o papel do chupa-chupa.“.
Encarando sozinha o aproximar do precipício, metafórico ou não, Claudia sente as dores alheias, aquelas que vivem paredes meias com ela e as que ficam nela a ecoar por a mãe partilhar consigo preocupações e medos, que pautam as suas crises de melancolia e dissabores amorosos, trazendo nas suas histórias ecos da misteriosa e inesquecível “Rebecca” de Daphne Du Maurier: “Eu senti-me pequena, a bebé que olhava para a escada no nosso apartamento atrás da grade de segurança, mas sem a grade. Eu, sem nada além do meu corpo, em frente de um abismo verdadeiro. Naquele ponto do desfiladeiro era estreito e, lá em baixo, o rio, que bebia dos ribeiros e riachos da montanha, estava tapado pela vegetação, uma selva indomada.“.
Quintana consegue, num livro tão breve, compor um abismo tão abespinhado que ganha proporções humanas, onde o não dito é essa selva indomada que só pela força das raízes é capaz de fazer ruir uma família.
Sem Comentários