Sem cabeças de cartaz ou, pelo menos, nomes que levassem a uma desenfreada corrida às bilheteiras, a edição deste ano do Super Bock em Stock decorreu com menos tráfego, sem filas à volta dos quarteirões mas alguns grandes concertos (e também desapontamentos, como mais uma daquelas bandas inglesas que vão mudar o mundo e, afinal, chegam-se à frente de mãos vazias). Seguem-se, daquilo em que conseguimos pôr a vista e as orelhas em cima, os cinco concertos que ficaram a retinir-nos no nervo auditivo.
Gretel Hänlyn
Tal como acontece com Aldous Harding, Gretel Hänlyn – Maddy Haenlein no CC – parece ter voz para percorrer, de trás para a frente, todos os degraus de uma pauta de música. Curiosamente, e ao contrário do que aconteceu com a guitarra, nunca teve aulas de canto, e os seus amores musicais passaram, a dado momento, de Take That e One Direction para Nick Drake, The Killers ou Pink Floyd. Nos primeiros anos de adolescência, foi obrigada a lidar com uma doença que a fez perder massa muscular à volta do diafragma, o que a impediu de cantar por uns tempos. Quando a proibição foi levantada, foi como ter de aprender tudo outra vez, confrontando-se com uma voz que soava de forma estranha, impessoal e diferente – vindo, talvez daí, esta reinvenção a cada canção, como se interpretadas por diferentes personas.
No concerto do S. Jorge, onde na recta final disse ter custado ali chegar à boleia de uma valente constipação, Gretel Hänlyn cumpriu aquilo que disse numa entrevista ao britânico NME: tentar trazer de volta as melódicas guitarras dos anos 90, década profícua em canções que, ainda hoje, se cantam a plenos pulmões depois de um par – pelo menos – de copos bem servidos. Tudo isto na boa companhia de um trio de respeito, que elevou o indie rock a património imaterial da música: uma baterista que, quase de certeza, precisou de autorização parental para deixar o país; um baixista que parecia ter colado cromos do mundial no baixo – e que ficaria muito bem numa versão Peaky Blinders de cores mais claras; e um guitarrista de cap e t-shirt metaleira, que poderia ter chegado de uma etapa de um torneio de skate.
Houve tempo para andar de “Motorbike”, beber “Apple Juice”, ouvir um tema sobre gatos, dançar “It`s The Future, Baby” como se fosse um hino country, escutar “Today I Can`t Help But Cry” – “Uma canção que vai estar cá fora dentro de algumas semanas, e onde pus todo o coração” – ou, ainda, sermos apresentados à musa “Connie” – a canção favorita de Gretel Hänlyn, desse grande disco de estreia intitulado “Slugeye”. Fiquem de olho nesta miúda.
Bala Desejo
É um daqueles casos em que, claramente, a soma das partes brilha mais do que as peças soltas. Formados em 2021 por Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra, os Bala Desejo são uma banda que cruza um território por onde se passeiam a bossa nova, a indie pop, o pop rock, muito tropicalismo e algum do perfume da Música Popular Brasileira. “SIM SIM SIM”, o disco de estreia do quarteto lançado este ano, levou para casa um Grammy Latino, atribuído ao “Melhor Álbum Pop em Português”. Bem merecido, diga-se.
No concerto do S. Jorge, para o qual bastaram dois ou três acordes para que as cadeiras deixassem de estar ao serviço, os Bala Desejo surgiram em modo trio – Lucas Nunes está em digressão com Caetano Veloso -, acompanhados por um discreto mas muito eficiente trio (bateria, baixo e guitarra eléctrica).
“Lua Comanche” foi o ponto de partida para um concerto curto mas bem espremido, com direito a coros, muita dança, palmas sincronizadas e um amor capaz de fazer, desse imenso oceano que nos separa, uma inocente pocinha de água. Dora Morelenbaum, Julia Mestre e Zé Ibarra vestiram-se a preceito, parecendo ter chegado de directa da cerimónia dos Grammys, numa actuação com um lado cénico que mostrou que a bala é, sem espinhas, a guloseima do momento. Soy bala deseo, soy bala deseo.
Ela Minus
Techno-pop para dançar como se não houvesse amanhã. Esta poderia bem ser uma frase desenhada para promover “Acts of Rebellion”, o enorme disco de estreia da colombiana Ela Minus, gravado em equipamentos analógicos na solidão do seu apartamento em Brooklyn, Nova Iorque. Um disco com tanto de íntimo como de tumultuoso, oferecendo diversas paisagens electrónicas e ainda mais manifestos políticos, resultando em qualquer coisa como a Desobediência Civil de Thoreau levada ao Techno.
No concerto do Coliseu de Lisboa que encerrou a primeira noite do festival, Ela Minus fez a festa com um teclado, alguma maquinaria, um microfone e projecções que alternavam entre imagens ecstasianas e palavras de ordem, naquele que foi um teste às antigas fundações do Coliseu. Uma actuação de uma hora que esteve entre os grandes momentos dançantes da história deste festival que, como um esmerado camaleão, vai mudando de nome mas mantendo a pose. Queremos mais disto em 2023.
Porridge Radio
Formados no ano de 2015 em Brighton, Inglaterra, os Porridge Radio trouxeram ao Super Bock em Stock “Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky”, um dos mais recomendados discos indie rock deste 2022. A banda, formada – e liderada – por Dana Margolin (voz e guitarra), Maddie Ryall (baixo), Georgie Stott (teclados) e Sam Yardley (bateria), brindou o público do Coliseu com um concerto e pêras, que foi da timidez inicial a um grito libertador.
Há, nos Porridge Radio, algo que remete para o clima de fim de festa de muitas das canções dos Pogues, a que se junta, a espaços, a polifonia em tempos de glória dos Architecture In Helsinki, os teclados etéreos das Au Revoir Simone, as paisagens delicadas dos Beirut ou algumas reminiscências mescalínicas dos Pink Floyd.
As palavras de Dana Margolin foram parcas, mas a intensidade que pôs na forma como cantou – e a excelente dicção – fez de cada canção um hino, e desta noite uma “Birthday Party” para cada um dos presentes que se deixou levar na cantiga. “Cativante como o Inferno”; como diriam os próprios.
Sudan Archives
É um pássaro? Um avião? O Super-Homem? Questões que terão passado, a dado momento, pela cabeça dos que apareceram no Capitólio praticamente em fim de festa Stockiana, e que deram por si na presença de Brittney Denise Parks. Alguém que, no universo musical, tem escrito a sua história sob o nome de Sudan Archives, com já dois longas-duração para mostrar ao mundo: “Athena” (2019) e “Natural Brown Prom Queen” (2022).
Parks aprendeu a tocar violino de ouvido em criança e, por esta altura – e depois de uma longa e corajosa transformação -, é já uma estrela pop de corpo inteiro: toca violino, canta, compõe, dança e tudo faz para que os seus concertos sejam momentos para recordar mais tarde. Perante a indiferença do público, muitos de boca aberta perante a parca indumentária e um universo sonoro que recusa a facilidade, Sudan recusou os serviços mínimos e sacou de todos os ases, descendo e misturando-se com o público para uma dança, atirando para o ar uns “turn the fuck up!”, perguntando se sabíamos o que era um buraco ou, depois de duas cançõoes sobre mamocas, ter mostrado as suas, convidando toda a gente a fazer o mesmo. Isto antes de partilhar que dois dias antes havia ficado sem voz, e que era muito bom estar de volta. “Are you all high just like me?”, pergunta a certa altura. Quem não estava ficou certamente. Provocação da boa e um grande concerto-manifesto, vindo de uma mulher que simplesmente se recusou a render.
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