Quando o título de um livro de poesia menciona o Inferno e o Paraíso, pensamos imediatamente na Divina Comédia de Dante. Todavia, o prolífico poeta açoriano Nuno Dempster desafia o cânone, afastando-se das antigas mitologias e substituindo o Purgatório pelo Limbo, em “Limbo, Inferno e Paraíso: Três Estados Apócrifos” (Companhia das Ilhas, 2022).
Os cem poemas do livro distribuem-se por três secções, uma para cada estado, caracterizando-os com uma enorme força imagética. O primeiro texto funciona como uma espécie de introdução, de limbo dentro do Limbo, onde o Purgatório é descrito como um simples vestíbulo com três portas, despojado de esperança e do potencial salvífico do remorso. A primeira porta conduz ao Limbo – um espaço luminoso, pertencente às crianças, aos animais e à Natureza em geral, pontuado por reminiscências de uma infância que poderá ter sido a do autor. Este é também o domínio “dos justos, dos amantes que resistem, / dos que sofrem desgostos / e transportam o mundo aos ombros”, mas os lúcidos sabem que não podem lá permanecer e a entrada no Inferno é a pena a pagar pela lucidez, essa inimiga da paz.
O Inferno é um estado de desesperança que se manifesta nas rotinas de um quotidiano atordoador – ao ponto de o sono se tornar “o grande privilégio de viver” –, no temor a uma doença, ou na mágoa de saber que não é verdadeira a ideia de Paraíso ensinada na catequese. É nesta secção que encontramos mais explicitamente as marcas da contemporaneidade, com referências à recente pandemia, aos incêndios que assolaram o país e ao vozear nas redes sociais. A dedicação à escrita proporciona um escape, mas o poeta é condenado a regressar à realidade, “poema após poema”. O amor está presente, mas é tratado com ironia: “um amor maior protege-o do inferno, / ainda que de longe, a três horas de carro“.
A ironia torna-se mais acutilante quando abordamos o Paraíso. Este pertence aos ricos e poderosos, estando a sua porta blindada com soberba, avareza e crime. Para as massas, não passa de uma mentira apregoada para assegurar a sua submissão. No entanto, a esperança vive através da melancolia, e talvez possa brilhar enquanto nos lembrarmos do Limbo, como nos recorda o poema que encerra este pequeno grande livro:
“Quantas vezes soubemos que existir
completamente
é ter passado os três estados e poder
voltar ao do princípio?
Estamos tão ligados,
percorremos o mundo com passos tão iguais
que hoje somos apenas um, pois que
só o limbo nos toca; o paraíso
é uma maldição antiga,
e há muito que não vamos pelo inferno
onde os desencontrados moram.
Não temas que atravessem o caminho.
Há sempre uma casa onde estarmos.
Cantaremos canções alegres,
e, quem sabe, talvez ainda ouçamos
os muros a ruir no paraíso.“
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