Luís Corte Real continua a desbravar caminhos inexplorados na literatura fantástica portuguesa, dando sequência às aventuras de Benjamim Tormenta, o detective do oculto que nos apresentou em “O Deus das Moscas Tem Fome” (Saída de Emergência, 2021). Neste segundo volume, intitulado “Assim Falou a Serpente” (Saída de Emergência, 2022), não só transporta o seu protagonista até novos territórios, como também expande a narrativa através da inclusão dos pontos de vista de outras personagens.
Benjamim Tormenta permanece uma figura fascinante, de origem obscura, tão versado nas artes de combate orientais como no uso das armas de fogo, dotada de capacidades sobre-humanas por um demónio ancestral aprisionado ao seu corpo por tatuagens místicas, e controlado – até certo ponto – com agulhas e ópio.
Explorando o interesse do demónio em manter o hospedeiro vivo até se conseguir libertar, Tormenta coloca os seus talentos de investigador de casos insólitos ao serviço dos interesses do Reino de Portugal do século XIX, ao mesmo tempo que defende os cidadãos comuns, cruzando-se constantemente com individualidades históricas e personagens fictícias de diversas fontes, todas habilmente integradas na trama.
No primeiro volume, a acção centrava-se em Lisboa e arredores, com uma breve passagem por Macau. Também é na capital que se passa o primeiro conto deste novo livro, protagonizado pelo fiel servidor indiano do detective, Adama Ramanujan – familiarmente tratado por Raj –, que defende o seu amo de uma conspiração motivada por ambições e ressentimentos humanos. Todavia, destacam-se aqui, tanto pela extensão como pelo fôlego narrativo, duas aventuras noutras paragens: o Porto e o Egipto.
Na Cidade Invicta, o mito de Frankenstein é recriado por um culto que deseja invocar uma divindade do submundo, num enredo que tem tudo para se tornar um clássico do horror cósmico. Para salvar o mundo, Tormenta conta com a ajuda do amigo Fradique Mendes, um poeta fictício criado pelo grupo Cenáculo, ao qual pertencia Eça de Queirós, uma das principais referências de Luís Corte Real, cujo estilo de escrita é, em si mesmo, uma homenagem a esse autor.
Na terra dos faraós, aonde Tormenta se desloca em resposta a um pedido de ajuda do vice-rei para pôr fim a uma estranha praga, o enigma histórico dos povos do mar, gentes de proveniência incerta que fizeram colapsar impérios da Idade do Bronze, é associado a um demónio que visa alterar o passado para transformar o presente.
Seja qual for a geografia, a recriação dos ambientes é um ponto forte da obra. A excelência das descrições, aliada a boas doses de acção, dá vida a um passado alternativo que seduz e assusta, que talvez gostássemos de visitar se pudéssemos viajar no tempo – mas onde não nos agradaria permanecer. É precisamente com a insinuação de uma viagem no tempo que o último conto termina, deixando em aberto o destino do protagonista após uma luta que se dispôs a travar como se fosse a derradeira. A “bibliografia em jeito de conversa e alguns ovos de Páscoa” sugerem que não faltam fontes de inspiração ao autor. Talento também não, como demonstra o par de obras publicadas. Aguardemos para descobrir o que mais a sua imaginação terá para lançar a Benjamin Tormenta “quando as leis físicas e naturais dão lugar a sonhos e pesadelos”.
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