Filmada em 1949, “Jour de Fête” é uma das mais carismáticas comédias filmadas entre o preto e branco e a Thomson-color, que conta a história de um carteiro inapto que, frequentemente, interrompe os seus deveres para trocar uns dedos de conversa com os habitantes locais, que dele zombam assim que vira costas. Assombrado com o progresso dos serviços postais norte-americanos, o carteiro tentará competir com o avanço tecnológico fazendo uso apenas da sua bicicleta, levando-o a velocidades tão extremas quanto o número de gargalhadas que os espectadores vão lançando durante o filme, competindo com os esmerados e divertidos efeitos sonoros.
Durante os quatro dias que esteve em Cem Soldos, o Deus Me Livro não deu de caras com qualquer carteiro ou bicicleta desgovernada – e sobretudo com gente zombeteira -, mas não seria difícil pensar naquilo que viveu nesta pequena povoação de cerca de mil habitantes à luz do título que o filme de Jacques Tati ganhou na versão portuguesa: Há Festa na Aldeia.
Após 5 edições em modo bi-anual – iniciadas em 2006 -, o Festival Bons Sons, evento com um ADN assumidamente comunitário (ler aqui a entrevista ao director Luís Ferreira), decidiu este ano estabelecer-se como um evento anual, tentando fazer desta aldeia uma paragem obrigatória para quem quer juntar o espírito de aventura, a sede de descoberta, o apelo rural e a paixão pela música portuguesa, tudo num mesmo espaço geográfico.
A partir do momento em que transpusemos uma das cancelas que fecham a aldeia durante a realização do festival, pudemos experienciar muito mais do que um festival urbano onde, para lá da música, pouco há a esperar. Aqui vive-se toda uma experiência de comunidade, que se vê invadida e que dá tudo de si para bem receber aqueles que, durante quatro dias, fazem de Cem Soldos a sua casa temporária.
A vida muda mas os habitantes, esses, não abandonam a aldeia até que o pó assente e os desconhecidos se vão embora. Continua a ir-se à janela regar as flores, a ir à rua passear o cão, a dar um salto ao café para assistir o jogo do clube do coração. E, também, a ir-se ao largo ver um dos muitos concertos, levando de casa uma cadeira ou usando um dos cafés que dão cor e perfume ao largo.
Para aqueles que gostam de petiscar, Cem Soldos é um pequeno paraíso pronto a ser descoberto, seja em restaurantes de formato mais tradicional, quintais preparados a preceito ou adegas com ar mais ou menos decrépito, dependendo do sentido de estética de cada um. Das sandes de queijo ao chouriço com pão, dos caracóis às moelas, das sopas aos pampilhos e jesuítas com amêndoa, nada falha para que o visitante se oriente mesmo com pouco dinheiro, nem que para isso recorra ao sempre prestável mini-mercado.
É também um festival onde cabem várias gerações, desde bebés de colo – há música para crianças durante as manhãs – aos que já muito viram e muito hão-de levar desta vida, a crianças que enchem as ruas de risos, gritos e vida. E também não há passerelles, guias para bem vestir ou preocupações extremas com o aspecto, apesar de não terem faltado caras bonitas (e sobretudo felizes).
Este ano, o cartaz juntou nomes consagrados como Camané, Ana Moura e Clã a outros quase desconhecidos, num desfile entre música tradicional, rock experimental, jazz, folclore e muitos outros universos sonoros, permitindo somar o gosto pelo conhecido ao prazer da descoberta, fosse no palco do largo, no bonito coreto situado numa das entradas da aldeia, num palco enfeitado ao longe com fitas vermelhas ou numa igreja onde até um ateu poderia ter encontrado a paz de espírito. Ou numa garagem que acolhia qualquer artista ou banda que quisesse dar a conhecer a sua música.
Enquanto cumpria a preceito o slogan “vem viver a aldeia”, o Deus Me Livro ainda arranjou tempo para assistir a alguns concertos, dos quais deixa aqui impressões ao estilo telegráfico. Para o ano queremos regressar, a este lugar onde Jacques Tati seria, certamente, muito feliz. Houve festa na aldeia.
Telégrafo Bons Sons
Francisca Cortesão levou até Cem Soldos a versão reduzida dos Minta & The Brook Trout, acompanhada pelo ukelele e pela voz de Mariana Ricardo. Ainda que o vento tivesse tentado perturbar a actuação deste duo com a alma atravessada pela folk norte-americana, celebrou-se o amor e o desamor, a vida num estado perfeito de melancolia. É bom saber que há um novo disco a caminho.
Os OCO são uma espécie de Dead Can Dance em modo contido, onde ao estado de quase meditação a que induzem os espectadores se suprimem as vozes que levam o mantra ao estado estratosférico. De qualquer forma, a envolvência da percussão com instrumentos como o didgeridoo, a cítara ou a guitarra portuguesa ajudaram a que fosse alcançado um estado tremendamente zen.
Os Criatura ofereceram um festim onde, estranha e deliciosamente, moelas pareciam combinar bem com chocolate quente. Uma actuação onde ao funk, ao fado e a toda a interpretação da banda do imenso património musical e proverbial português, se juntou ainda o cante alentejano. Foi bom de ver. E ouvir.
Os Clã mostraram, uma vez mais, que ao vivo são um verdadeiro fenómeno, liderados por esse pequeno furacão com o nome de Manuela Azevedo. Refrões cantados a plenos pulmões, palmas a preceito, uma energia estonteante e contagiosa, num concerto onde foi clara a química entre a banda e o público. Descendência não lhes faltará.
Mesmo com uma qualidade sonora uns furos abaixo do desejado, os D`Alva mostraram que poderão ser muito mais que um efémero fenómeno pop. Há letras desafiantes, irreverência a rodos, um dedicado fazedor de beats e um entertainer incendiário, com espírito de cantor e alma de dançarino. Fiquem colados a estes rapazes, esperam-se daqui coisas muito boas.
Bruno Pernadas é um daqueles músicos que, dentro da sua cabeça, deve dar guarida a uma orquestra inteira, instrumentos incluídos. Na boa companhia de oito ilustres músicos – Nuno Lucas (Tape Junk), João Correia (Tape Junk, Julie & The Carjackers), Afonso Cabral (You Can`t Win Charlie Brown) e Francisca Cortesão (Minta) estiveram entre os eleitos -, o autor de How Can We Be Joyful in a World Full of Knowledge empreendeu uma viagem de longo curso e com várias escalas, num avião partilhado pela folk, pelo jazz alienado, pela pop com travo a praia – penteada à moda Beatlenesca por um barbeiro com pinta de Jim Morrisson – e todo um tipo de sons e ritmos que fazem dele um escultor pop num universo criativo onde a delicadeza corre para a par com a experimentação.
Ana Moura é a personificação do fado pop sexy, da desconstrução do género musical onde, às guitarras portuguesas, se juntam teclas, baixo e bateria. Há palmas a acompanhar, refrões cantados por um largo inteiro, temas clássicos da fadista a que se junta, por exemplo, uma versão de um tema dos Rolling Stones. Quem disse que é preciso silêncio para se ouvir o fado? Uma senhora.
Tio Rex é ainda um segredo bem guardado da folk nacional, seja com pronúncia inglesa ou sotaque à Camões. Num concerto que teve lugar na casa do Senhor ouviram-se muitas palmas, viram-se sorrisos e não se esconderam as lágrimas, numa celebração de onde todos saíram de alma limpa e coração cheio.
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