Em 1930, Jean Cocteau escreveu o monólogo “A Voz Humana”, que acabaria por se tornar numa obra intemporal da literatura mundial e num nutritivo alimento teatral, ao revelar uma maiores tragédias reservadas à vida humana: o drama das relações amorosas. Um sentimento que, de certa forma, está presente em “O Plantador de Abóboras” (Abysmo, 2020), livro de timorense Luís Cardoso onde, através da voz de uma mulher que esperou pelo noivo durante longos anos, viajamos pela triste sina de um país por onde passaram os “malae colonialistas”, os “kamikazes do Japão”, os “komodo ou lagartos da Indonésia” e, por fim, “os seus libertadores”. E sempre com o “Dom Quixote” de Miguel Cervantes a comandar, à batuta, os seus três andamentos.
“Quando chega a noite é a memória que nos separa e distingue. Cada um cobre-se com a memória que tem”. É precisamente a memória e a loucura que servem de combustível à voz desta mulher, que habita um lugar ondo todos ou quase todos se foram embora, e que fala para os espíritos, para si própria, para o noivo que regressa – como carne ou fantasma caberá ao leitor decidir – e para um leitor invisível, num mapa feito da tradição literária oral no qual se fala do abandono: o individual e, numa escala mais larga, o de um país inteiro. Xanana Gusmão aparece aqui como o “irmão extraordinário”, aquele que um dia terá sonhado com cada timorense ter um jardim no qual plantar abóboras mas que, a certa altura do caminho, terá decidido trocar a plantação de sementes pela vertigem do petróleo.
Um livro poético e violento, feito de lendas, mitos e factos, do imaginário popular e da forte ligação aos elementos naturais. Um livro que, não almejando ser político, o acaba por ser, romanceando um século conturbando de um país que viajou quase sempre numa montanha-russa, feita de enganos, muita dissimulação e guerras sobrepostas, cada uma feita para apagar a anterior. Um longo poema no qual Luís Cardoso desenha um mapa algo desencantado, fazendo do exercício de recordar algo que possa ser, finalmente, uma semente atirada à terra. Afinal, “o passado é um lugar estranho quando se sai dele como se nunca lá tivesse entrado”.
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