O amor, a morte e o tempo. O contrabaixista portuense José Aníbal Beirão, vulgo Aníbal Zola, condensou estas três palavras numa só para baptizar o seu segundo disco de originais, “Amortempo” (Aníbal Zola, 2020), um trabalho que guerreia em várias frentes. Enquanto o disco anterior, “Baiumbadaiumbé”, estava ligado aos ritmos tropicais da música brasileira, este novo trabalho mostra o músico expandir-se para outras direcções.
Começa nos jogos vocais de “Marujo”, composição que vive no universo noir alfacinha dos Dead Combo, navalha na mão pelas ruelas e becos escuros da Madragoa. O contrabaixo electrificado e pulsante remete também para os saloons encardidos do velho oeste.
“É Muito Fácil Falar” é outro tema que revela alguma tensão. Torna-se apertado, perigoso, com o seu piano soturno e desequilibrado. Segue-se “Mar Profundo”, um devaneio báltico cheio de limos no casco, a fazer lembrar Kusturica se a sua No Smoking Orchestra tocasse standards de jazz num bar escuro da Ribeira. Ao mesmo tempo passeia-se por aqui, na sonoridade orgânica, Tom Waits com os seus espectros.
Curva apertada em direcção à Argentina: o curioso “Tango da Lua Nova” mostra a amplitude e versatilidade do músico. Onde o disco é mais interessante é nestas temperaturas diferentes, neste estado de combustão permanente dos temas – ainda que se perca alguma coesão, o factor surpresa é cativante. “Amortempo” guarda espaço para o balanço tropical de “Samba para o Paulinho”, o fado bairrista em “D. Boa Morte”, o rock corrido à Rui Veloso de “Vida de Cão” e até o inesperado Vira do Minho de “Tanto para Contar”, enfeitado com um cavaquinho truculento.
O músico tem o dom da simplicidade – no bom sentido. Ouvimos “Valsa de Três Notas Só” e constatamos como o arranjo resulta na medida certa, sem esforço. Chegamos ao fim da viagem com a balada cigana “A Montanha”, que o autor já chamou de “marcha do Dia dos Mortos, no México”, inspirada pela música da mui mexicana Lhasa de Sela.
O que ressalta de todos os temas é a segurança na voz e a assertividade na produção. São 10 temas minimalistas, muito amparados no contrabaixo, com influências que apontam à América Latina mas não só: os ambientes depressa viajam de Paris ao México, de Lisboa a Nova Iorque, do Minho ao Rio de Janeiro. A voz de Aníbal Zola segue uma nobre linhagem: às vezes soa a Miguel Araújo, outras a Salvador Sobral, outras ainda lembra o Fausto – um corrupio de boas referências. É na voz que assentam as raízes portuguesas das composições.
“Amortempo” revela um músico com mundo – Aníbal Zola consegue alargar o seu raio de acção sem perder a identidade, continuando a soar como ele próprio: uma voz original na música portuguesa. Recomendado.
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Próximos concertos
5 de Junho, Casa da Música, Porto
12 de Junho, Casa da Cultura, Setúbal
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