Voz esculpida com dois maços por dia, a arranhar como lixa; guitarras sujas da poeira do deserto; canções encardidas, encharcadas em whisky marado e muito negrume – é esta a fórmula do veterano Mark Lanegan, aperfeiçoada ao longo da sua discografia quilométrica.
Desde “Bubblegum”, de 2004, o seu trabalho a solo tem mostrado uma improvável aproximação à electrónica, e o novo registo de originais, “Somebody’s Knocking” (Heavenly Recordings, 2019) não é excepção. Ao longo do disco, guitarras encharcadas em reverb convivem com sintetizadores gélidos – salta à vista a influência de bandas como os Joy Division e os New Order, misturadas com as paisagens góticas dos Depeche Mode ou dos The Cure -, tudo filtrado pela voz crua de Lanegan.
O músico escreveu o disco com os mesmos cúmplices de “Gargoyle”, álbum de 2017: o guitarrista Rob Marshall e o produtor Alain Johannes ajudaram a construir um lote de canções que ecoam os mais inspirados títulos dos anos 80.
Temos então Disbelief Suspension, música para uma viagem em contramão, a cheirar a alcatrão, gasóleo e borracha queimada. Temos também Dark Disco Jag, em que o nome diz tudo: pesada e sufocante, com uma caixa de ritmos cristalina a pontuar a voz satânica de Lanegan. Há pontos de contacto com o som dos velhinhos Sisters of Mercy, e as texturas de guitarra podiam ter saído dos primeiros discos dos The Cult.
A sinistra Night Flight in Kabul é mais um ponto alto: Lanegan à procura de ouro num ninho de cobras em Kabul. Vai buscar influências a luminárias como os Bauhaus de Peter Murphy, os Echo and The Bunnymen ou Siouxsie and The Banshees. Adornos electrónicos brilham como linhas prateadas, a brilhar na escuridão geral do tema.
Gazing From The Shore podia ser uma música dos Interpol: rock gótico com uma linha de baixo marcada, a dar direcção à música. A voz surge num registo mais alto do que o habitual, mais melódica.
Todo o disco soa como uma carta de amor aos Joy Division e aos New Order, com Playing Nero, Name and Number e She Loved You a aproximarem-se tanto que quase podiam ser covers.
A temática continua estacionada no negrume da vida malvada de Lanegan, mas aqui e ali há alguns pontos de luz: Penthouse High parece mais luminosa, tingida de esperança, e há ilhas de calmaria no disco, nomeadamente em Paper Hat, devaneio semi-acústico de coração partido, e em Playing Nero, que podia ser uma prima direita de Atmosphere, dos Joy Division.
“Somebody’s Knocking” coroa da melhor forma a trajectória dos últimos dez anos de carreira de Lanegan. É o mítico músico a deixar para trás as suas vidas passadas, e a agarrar o ceptro de soberano do rock gótico dos nossos dias.
Depois da passagem pelo Coliseu de Lisboa para actuar com os Dead Combo, o rei Lanegan regressa agora a Portugal com a sua banda, para apresentar o novo disco: a 30 de Outubro toca na Sala Lisboa ao Vivo e, a 31 de Outubro, no Hard Club do Porto. Um concerto Lemon Live Entertainment.
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