Aproveitando o facto de residir em Lisboa, Peter Evans tem vindo a apresentar, na Galeria Zé dos Bois, um ciclo que congrega músicos nacionais e estrangeiros, a que deu o mais que apropriado nome de Som Crescente. Som Crescente#2, que teve lugar no passado dia 30 de Setembro, contou com a participação de Gil Dionísio (violino/voz), Inês Pereira (voz), João Costa de Almeida (trompete), Gianni Narduzzi (baixo), Pedro Melo Alves (bateria/percussão), Raquel Reis (violoncelo e direcção) e, obviamente, Peter Evans (trompete e direcção).
Final de tarde, 19h30. Subir a Rua da Barroca e atrasar o passo. A suspensão de uma década, da década anterior às trotinetas e aos amantes da paella como prato nacional, aquele momento em que te recordas que ir ao Bairro Alto era só mais um entre tantos outros passeios pela cidade, que por uma razão ou outra deixaram de fazer sentido. Uma cidade que nos foi sendo arrancada.
Som crescente é, também, som de resgate. Talvez pelo horário, talvez pelo facto de, após subirmos as escadas, nos depararmos com um público curioso e conhecedor, todo ele e sem exagero, da obra do trompetista Nova-Iorquino.
Som Crescente é, e estamos certos de que será sempre, o som do deslumbre. Poderemos enumerar todos os concertos em que estivemos presentes – do Jazz em Agosto ao Maria Matos, do Panteão ao Museu do Chiado ou, muito recentemente, na Culturgest, com Gabriel Ferrandini, e no Out.Fest – e dos quais saímos com a certeza de que nunca um concerto será a repetição do anterior ou a apresentação de fórmulas já apresentadas.
Neste caso, Som do Deslumbre pelo facto de o vermos a apresentar, pela primeira vez, um reportório variado: de Pauline Oliveros a John Zorn, de Anthony Braxton a Béla Bartok. Som Crescente como som da construção em conjunto, porque momento de combinações múltiplas, ora a solo ora em dupla ou noutra combinação possível, mas porque nos deu oportunidade para confirmar a qualidade excepcional de músicos cujo trabalho já conhecíamos (Raquel Reis, Pedro Melo Alves e Gil Dionísio) e de outros que mais do que justificam a nossa futura atenção (Inês Pereira, João Costa de Almeida e Gianni Narduzzi).
No final, aproveitámos para trocar umas impressões e compreender este Som Crescente com quem o ajudou a levantar: Raquel Reis.
Confesso que não foi surpreendente ver o teu nome junto ao do Peter Evans no “Som Crescente” #2, uma vez que sempre te vi “não confinada” a violoncelista da Orquestra Gulbenkian. Porque sentes esta necessidade em colaborar com músicos de outras áreas? O quanto te complementa ou afasta do teu “universo quotidiano”?
Depois de terminar a minha sólida formação clássica em Chicago e entrar na Orquestra Gulbenkian apercebi-me de que me faltava uma relação com a música mais sensorial. A mesma que me tinha feito encantar pelo violoncelo, com 10 anos de idade. Precisava de reequilibrar rigor técnico com expressão musical, coerência no discurso com prazer e liberdade. Subtil fronteira, essa tem sido a minha busca. A minha experiência na Orquestra Gulbenkian tem-me permitido evoluir muito artisticamente, trabalhando o ouvido, as competências da prática em conjunto, a capacidade de integração num todo, tendo um rico e variado contacto com as grandes obras do repertório dito “clássico” que muito admiro. A “necessidade em trabalhar com músicos de outras áreas” tem sido natural e só me tem enriquecido enquanto violoncelista. É como conseguir falar mais do que uma língua, com o meu instrumento. Como saber cozinhar com outras especiarias, outras combinações de sabores. Estou longe disso, mas sinto que esse é o meu caminho. Como uma expansão ou crescimento natural, a partir da minha “língua materna” que, apesar de intrínseca, não me define por si só. Ao longo da vida julgo que desenvolves a tua linguagem própria, a tua expressão pessoal, o teu som.
Como surgiu a colaboração com o Peter Evans?
O Peter Evans procurava alguém com o meu perfil, ou seja, alguém “do clássico” com uma abertura para o improviso, para participar neste ciclo “Som Crescente” que ele próprio criou. O conceito em si já é bastante interessante e pouco comum, e atraiu-me pela abertura na conjugação de pessoas de universos musicais que normalmente não se juntam.
Como foi o processo de trabalho? Já o conhecias? Já tinhas trabalhado com os outros músicos?
Conhecia o Peter de alguns, poucos álbuns, tendo a noção da sua importância para o trompete e o jazz em geral. Fiquei absolutamente fascinada com ele como trompetista e músico, de uma criatividade e generosidade ímpares. O processo de trabalho durante o workshop foi muito fluido e espontâneo, sempre com grande rigor e respeito. O facto de haver uma proposta de repertório (Anthony Braxton, Pauline Oliveros, John Zorn, Peter Evans) ajudou imenso a criar um fio condutor durante o workshop, aproximando os músicos e “quebrando o gelo”. Não conhecia praticamente nenhum dos músicos que participaram no workshop, mas fiquei muito inspirada e surpreendida com o lado profissional e criativo de todos. A experiência foi muito enriquecedora, fiquei com vontade de mais, de habitar mais esse lado do improviso e da criatividade que qualquer “músico clássico” tem.
Fotos: Nuno Martins
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