No mundo da criação artística, são geralmente as adições tramadas, as dúvidas existenciais ou os grandes tombos amorosos que, depois de espremidos numa tela, numa pauta ou numa página em branco, acabam por resultar em pedaços de arte memoráveis.
Na música, não faltam exemplos mais ou menos recentes de rodelas servidas por quem, após uma tragédia amorosa com argumento de Shakespeare, trocasse o cortar de pulsos por uma expiação musical. “The First Days Of Spring”, dos Noah and The Whale, “Changes”, de Beck, “Make Way For Love”, de Marlon Williams, ou “Goon”, de Tobias Jesso Jr., são apenas quatro exemplos desse massacre sentimental que virou arte e redenção.
Mas será que é também possível criar pérolas de coração cheio, sem com isso entrar numa de beijos exibicionistas, apalpões em público ou declarações partilhadas em redes capazes de provocar o refluxo gástrico? Sim, é possível, ainda que o negrume continue a ser o melhor companheiro para a ressaca amorosa – e uma boa garrafa ao lado para uma ressaca das outras nos dias seguintes.
Lançado há três anos em Portugal, “Mediterrâneo“, de Valter Lobo, mostra-nos alguém de bem com a vida e o amor, com a poesia e o mel a correr-lhe nas veias. Um disco habitado por cordas planantes, uma percussão encantatória e uma secção de sopros que convida à contemplação do Mediterrâneo, esteja ele onde estiver.
O disco abre ao som de um trompete meigo e de cordas gentis, num lugar onde se espantam os males à porta de casa e, ao invés de uma vida devassa, se define um mantra emocionalmente empreendedor: “P`ra sentir mais dou mais de mim”.
“Levo a imaginação toda em verso“, canta-se em “Mediterrâneo”, abrindo-se então essa janela com amplitude suficiente para um mergulho no azul primordial, a cor da capa e que pinta também este disco de uma faixa à outra.
Viaja-se até ao “Oeste” à boleia de uma vertigem Dead Combiana, onde algures na poeira do deserto se faz um voto matrimonial com direito a banda sonora.
“Tenho Saudades” é o mais perto que estamos do rock, em que assistimos a um desfilar de promessas que promete a eternidade.
“O governo não sabe nada do nosso amor” é um manual escrito a preceito sobre como fugir aos impostos e à implacável polícia do coração, com uma batida marcial em fundo à espera que a maré desista dos seus caprichos.
“Guarda-me esta noite” é um dos momentos poéticos do disco, abençoado pelo espírito da música de intervenção, numa reinvenção daquele “seize the day” celebrado no Clube dos Poetas Mortos.
“Fora do Coração” chega quase como que num baile, momento para procurar o melhor par para, com ele, nos fazermos às ondas, enfrentar as vagas e a escuridão e expurgar “as coisas que fazem sofrer” em clima de auto-motivação.
Em “#Supernós” já se sente a atracagem muito perto, tão perto que já se arrisca um grito de vitória.
“Quem me dera”, a derradeira música de embalar, leva-nos da terra para a lua e da lua para o mar, num naufrágio consentido onde a sereia se transforma agora em moça, podendo ao amor ser vivido fora de água. Três anos depois, continua a saber a refresco este mergulho sentimental no Mediterrâneo.
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