Poucos, como o argentino Jorge Luis Borges, terão sabido tratar do leitor com tamanha adulação, colocando-o no papel principal das suas histórias. No prólogo da primeira edição de “História Universal da Infâmia” (Quetzal, 2015), escrito em 1935, Borges escreveu isto: «Por vezes creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons autores.»
Referindo que os «exercícios de prosa narrativa» que formam o livro derivam das suas releituras de Stevenson e de Chesterton – e também dos primeiros filmes de Von Sternberg e de alguma biografia de Evaristo Carriego -, Borges radiografa desta forma as grandes histórias presentes neste pequeno livro: «Abusam de alguns processos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas.»
“História Universal da Infâmia” é o mais perto que Borges andou de escrever um romance, uma pequena enciclopédia dedicada à vilanagem sob as mais variadas formas. E que será, provavelmente, o seu maior livro entre todos os outros maiores, um desfile de personagens inesquecíveis.
É a partir de uma referência ao Padre Bartolomé De Las Casas que nos é apresentado O atroz redentor Lazarus Morel, o primeiro dos infames que habitam o livro e que, juntamente com a canalha branca composta por pescadores, caçadores e ladrões de gado – Morel era um deles -, mendigavam pedaços de comida aos negros nas margens do Mississippi. Morel terá sido um homem sem rosto – não há registos visuais de qualquer espécie -, um pregador, adúltero, ladrão de negros e assassino que, ainda assim, era capaz de mostrar alguma comoção. Acabou por morrer injustamente de uma congestão pulmonar e, «contrariamente a toda a justiça poética (ou simetria poética) tão pouco o rio dos seus crimes foi o seu túmulo.»
Filho de um carniceiro, O impostor inverosímil Tom Castro conheceu a miséria insípida dos bairros miseráveis de Londres, sentindo desde muito cedo o apelo do mal. Engendrou um plano genial – o de tornar-se um outro -, mas acabou indeciso sobre se haveria de se declarar inocente ou ser o carrasco de si próprio.
A viúva Ching, pirata era «uma mulher delgada, de olhos dormentes e sorriso cariado» que, após a morte do marido por um prato de lagartas envenenadas cozidas em arroz, se lançou ao mar movida por um sanguinário espírito de vingança. Conseguiu isso e muito mais.
Há também O provedor de iniquidade Monk Eastman, chefe de 1200 homens e herói com mil nomes, gangster de curiosos honorários: «15 dólares por uma orelha arrancada, dezanove por uma perna partida, vinte e cinco por uma bala numa perna, vinte e cinco por uma punhalada, cem pelo negócio completo.»
O assassino desinteressado Bill Harrigan nasceu por volta de 1859 num bordel subterrâneo de Nova Iorque, «o homem que para o terror e a glória seria Billy The Kid.>»Apesar de ter sido atraído para o Oeste, «algo do rufia (…) perdurou no cowboy.»
O grosseiro mestre de cerimónias Kotsuké no Suké era um «aziago funcionário que causou a degradação e a morte do senhor da Torre de Ako, e não quis acabar consigo como um cavalheiro quando a apropriada vergonha o intimou.» Apesar da tradição, o suicídio era algo que não lhe assistia.
O tintureiro mascarado Hákim de Merv nasceu no ano 736 de Cristo, e reza a história que a sua cabeça cortada foi levada a Deus antes de regressar à Terra para criar a doutrina da cara resplandecente, «tão cheia de relevos ou incrível que parecia uma máscara.»
O homem da esquina rosada, a última das histórias antes do capítulo final feito de fragmentos – nomeado Etcetera – tem tudo aquilo que faz parte da imagem de marca de Borges: enumeração, associação, crescendo, um enigma insolúvel. Trata-se de uma história de cobardia e coragem onde é o próprio autor assinala a estocada final, despedindo-se do leitor e fechando, ele próprio, a porta para o mundo da infâmia – ou, se preferirem, trazendo esta descaradamente para o nosso mundo: «Parti tranquilamente para o meu rancho, que ficava a uns três quarteirões dali. Ardia na janela uma luzinha, que em seguida se apagou. Por certo que me apressei a chegar, quando tal vi. Então, Borges, voltei a tirar a navalha curta e afiada que eu sabia trazer aqui, no colete, ao pé do sovaco esquerdo, e olhei-a lentamente, e estava como nova, inocente, e não guardava nem um fio de sangue.» Viva o Mestre.
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[…] História Universal da Infâmia – Jorge Luís Borges – Deus me […]
[…] em 1923. Depois publicou ensaios e, mais tarde, em 1935, publicou sua primeira coleção de contos, História universal da infâmia. A obra que daria projeção internacional ao autor seria publicada em 1944, cujo nome não poderia […]