No ano em que comemorou a sua 20ª edição, o Correntes d`Escritas pediu a escritores, jornalistas e convidados para, à maneira de um dicionário, escolherem a palavra que melhor representasse a sua ligação a este festival literário, tratando de escrevinhar umas linhas justificativas. Um exercício criativo que seria delicioso ver-se transposto para o Bons Sons, o festival que, este ano, assinalou a sua 10ª edição e uma longevidade de 13 anos, e que tem no centro a solidária aldeia de Cem Soldos. A julgar pelas muitas expressões encontradas em quatro intensos dias de festa, teríamos matéria suficiente para a edição de um dicionário em, pelo menos, dois grossos volumes.
Por aqui, a palavra escolhida seria “disponibilidade”, condição que vai montando o cerco e que funciona, apenas, quando o modo de reciprocidade é activado. “Trocar o corpo/Trocar a voz/Trocar o canto p’ra não cantarmos sós/Trocar, trocar/Dar, dar/Dar e receber/Dar, dar/Dar e receber”, cantava o incrível António Variações em 1984, tal como o poderia ter cantado este ano depois de uma passagem por Cem Soldos. Dar e receber que poderia bem ser o mantra quase bíblico deste festival, onde a cada ano se renovam amizades e se descobrem outras tantas, num lugar onde o tempo desacelera e a felicidade chega a ser palpável. Dar e receber que foi, também, o título da instalação fotográfica de Adriana Boiça Silva, que na forma discreta mas muito sentida do preto e branco tratou de embelezar muitas das janelas de Cem Soldos.
Projecto comunitário que merece ser levado ao colo, o Bons Sons tem sabido crescer de forma sustentável, atento ao que pode ser melhorado de ano para ano, sempre na promoção do respeito pelos habitantes da aldeia – dos seus lugares, ritmos e hábitos quotidianos. Um respeito que salta à vista, numa mescla geracional e de geografias que faz com que o país inteiro pareça caber dentro desta aldeia irredutível, por onde passeiam bebés ainda longe de sonharem com a primeira palavra, idosos que vão fintando com estilo o horizonte, crianças que trocam a tecnologia pelos divertidos Jogos do Helder, gente que pôs o mundo em pausa e decidiu mostrar-se disponível para a interacção humana.
Foi este o ano de uma aldeia em manifesto, da edição de um livro comemorativo de que falaremos mais para a frente num artigo dedicado, de concertos surpreendentes que juntaram artistas e bandas, do regresso à Eira – agora baptizada de António Variações -, da afirmação do Palco Zeca Afonso que, muito por culpa de um tapete verdejante, permitiu assistir a muitos concertos num estado de comunhão sentada. Pena só a transformação do coreto no Palco Giacometti, que ainda fez com que vertessemos uma lagriminha – aquele cenário de conto de fadas era, de facto, incrível. Palavra muito especial para o mobiliário disposto pelas ruas de Cem Soldos, feito pelos habitantes através do aproveitamento e do casamento por vezes algo improvável de alguns materiais, que nos mostra uma aldeia empenhada em surpreender a cada ano que passa, disponível para dar algo de si e receber, em troca e merecidamente, tudo de nós. Muito obrigado, Cem Soldos.
Apontamentos musicais
Benjamim e Joana Espadinha juntaram-se para o primeiro dos concertos especiais do Bons Sons, onde em modo Auto Rádio e na companhia de um super-grupo – ou, se quiserem, super-banda -, se provou a veracidade de um valoroso dito popular: o material tem sempre razão. Pop adocicada que se foi chupando como um rebuçado.
Só faltou mesmo uma versão tresloucada da Lambada para que a plateia pegasse Fogo Fogo, num concerto que foi sempre de grande exigência para as ancas. O mais perto que estivemos de uma aula de aeróbica regada a cerveja.
17 anos depois da dissolução do casamento, esta X-Wife mostrou estar recomposta e pronta para abraçar um novo amor, viajando entre hits intemporais e novas malhas. Quando, a certa altura, nos vêm trazer o casaco que caiu da mochila durante uma moshada espontânea – tendo o saldo negativo ficado em um copo perdido -, quer dizer que o concerto foi animado.
Não poderia ter sido mais feliz a estreia de Afonso Cabral no mundo dos concertos, num fim de tarde irrepreensível onde quase se escutou o silêncio e se cantarolou de peito aberto um hino chamado “Anda estragar-me os planos”. Ouçam o disco deste rapaz, minha gente.
A tradição ficou, nesta edição, entregue a Helder Moutinho, que foi das modas mais animadas aos fados de cortar os pulsos de que tanto gostamos. Isto na companhia de quatro violas e guitarras, que fizeram as cordas gemer de prazer. Ah, fadista!
A união entre os First Breath After Coma e Noiserv foi mais do que um romance de verão, e muitos foram os que exigiram o casamento depois de terminado o descarado flirt de palco. Uma setlist escolhida a dedo, um jogo de luzes irrepreensível, humor, uma incrível dinâmica de palco e um concerto que fica para a história dourada desta edição. Foi bonito, rapazes.
Foi na boa companhia de DJ Ride, e cercado por vídeos dos convidados que entraram na sua recomendada rodela, que Stereossauro levou o seu Bairro da Ponto a Cem Soldos, mostrando que o hip hop português vai bem com qualquer roupa, seja ela o fado ou o funaná. Props!
Pedro Mafama, candidato a rei do auto-tune, vestiu a túnica e desceu ao público para um animado sunset, onde houve fado, trap e kuduro. E, claro, beats incendiários para abanar o esqueleto. Tenham este miúdo debaixo de olho.
E o prémio de melhor concerto Bons Sons 2019 vai para… Luísa Sobral! Histórias contadas e cantadas, com o público sentado numa total rendição ao charme, humor e à voz incrível desta rapariga, que nos mostrou um pouco do seu mundo e de como este vai dando corpo às suas canções. Bravo, Luísa!
Espreita aqui as galerias fotográficas (e identifica-te e aos teus amigos e amigas se os vires por lá):
Retratos
Concertos 8 Agosto
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Concertos 10 Agosto
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Fotos: Madalena Pintão
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