Estamos mais ou menos a meio do concerto quando Mayra Andrade, ensaiando um coro ainda longe da boa afinação, pede ao público para que grite à imagem da nova Lisboa. Um grito, arriscamos dizer, que possa representar a multiculturalidade, a fusão e o esbater de fronteiras entre credos, raças e géneros por que a capital reclama – ou que, pelo menos, deveria reclamar -, longe da mentalidade ainda primitiva de um país que decidiu trancar a empatia em casa e deitar fora a chave.
Lançado há cerca de dois meses, “Manga” representa, de certa forma, esta ideia de universalidade, de comunhão, naquele que é um regresso triunfal de Mayra aos discos. Uma rodela frutada onde o português se funde com o crioulo ou onde a kizomba dança com a pop, com temas que lançam Mayra para um patamar reservado as maiores estrelas da pop actual.
Foi um Capitólio esgotado e bastante enérgico que recebeu a visita de Mayra Andrade, que viria a repetir a dose no dia seguinte. Um concerto que parecia ganho desde o primeiro minuto, com um coro a anteceder “Afeto” e a entrada em grande estilo de Mayra, vestida a preceito para uma noite de gala que poderia terminar de manhã – os óculos de sol estavam lá para isso.
“Finalmente. O dia de hoje chegou!“, diz uma ansiosa Mayra falando de “Manga” como “um filho que carreguei e que me está a dar tanta felicidade“.
“Terra da Saudade” traz-nos o perfume do reggae e uma fusão entre a beleza e o saber cantar, que poderia servir de lição a quem saiu algo envergonhado do Festival da Canção. Nesta viagem sonora à volta do mapa-mundo há momentos que soam a jazz sem pátria, onde cabem solos à Satriani ou coros que o Tim Burton não desdenharia ter num dos seus próximos empreendimentos cinéfilos. Durante uma súbita fuga do guitarrista, Mayra ainda desafia alguém a tentar uma cover de “Afeto”, mas ninguém se chega a frente.
Serve-se também um kuduro das Arábias e, se por momentos nos dissessem que estávamos no lux e o dia já tinha chegado, cairíamos que nem patos. Mas há também “Tan Kalakatan”, o mais perto que Mayra terá estado de abraçar o hip hop, a que a certa altura a cantora se atira ao vocoder à moda de James Blake, para terminar tudo em beleza como se os Daft Punk tivessem tomado conta da coisa.
“Vapor di Imigrason” é dedicada a todos os imigrantes contém ecos de lambada, aproveitando Mayra para perguntar quem já viveu uma daquelas historias de amor capazes de sugar todo o oxigénio do corpo.
Apresenta-se a banda em grande estilo e regressa-se a “Lua”, do saudoso “Navega”, que aqui surge transfigurada levando o público a um jogo de canto e resposta, num crescendo que durou até muito depois do abandono dos músicos do palco, servindo de alimento ao obrigatório encore.
“Reserva para Dois” e “Ilha de Santiago” servem de lançamento a “Guardar Mais”, canção escrita por Sara Tavares, que refreou o surto de adrenalina e fez terminar em beleza esta viagem por Lisboa, pelas ilhas, pelo fascinante mundo de Mayra Andrade. Da próxima vez que pensarem num filme que se chame “A Star is Born”, não precisam de procurar mais pela actriz principal.
Promotora: Sons em Trânsito
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