“As nossas mãos ficaram juntas uns segundos, séculos, férias, milénios. Ela estava a limpar o pó, eu a colocar um livro na estante. (…) Senti uma felicidade estranha, como se nunca a tivesse experimentado em nenhuma das suas variantes (…)”.
Será possível medir a felicidade? E quanto tempo pode esta durar? Uma hora, mais ou menos tempo? Um toque de mãos pode determinae a nossa vida, a nossa felicidade?
“O Princípio de Karenina” (Companhia das Letras, 2018) relata-nos a carta escrita por um homem à filha que não conheceu, narrando-lhe a sua vida desde a infância. Trata-se de uma carta intimista, apresentada em cinco momentos, marcados sempre por uma fotografia e citações que nos recordam o clássico “Anna Karenina”, de Liev Tolstói. São pequenas paragens que nos obrigam a olhar para dentro de nós mesmos, (re)pensando o espaço, o tempo e a felicidade, onde os segredos mais recônditos da alma são descritos de forma intensa, simples e reveladora: “Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo. Esta história, a minha e da tua mãe, é também a tua”.
A narrativa começa no seio familiar, onde o protagonista evidencia a forma como o seu pai revelava o pânico visceral face ao mundo desconhecido: “O meu pai chamava bárbaros a todos os que viviam fora da nossa casa, os gregos chamavam bárbaros aos que não eram gregos”. Uma aversão ao estrangeiro, ao desconhecido, um medo de que alguma coisa pudesse ameaçar a segurança ou a vida de alguém – a sua própria vida. Um pai que “era um afasta-tudo, enquanto o amor é o contrário disso”.
A vida, tal como o crescimento, é composta de encontros e desencontros, de tensões e contradições. Assim, onde reinava o medo e os preconceitos habitava também o amor – “a pessoa que mais amava naquela casa também A minha mãe“. A mãe que lhe acaricia o pé deformado, como quem lambe feridas e incita uma perfeição que não existe. A mãe: símbolo do feminino, do afecto e da conciliação.
Um dia, o seu pai morre. Desprevenido. “Quando voltámos a casa, depois do enterro, subi à figueira da entrada da propriedade. Creio que, nessa altura, pensava ainda na morte como um espaço físico que é possível vislumbrar como qualquer paisagem banal. O que vi nesse dia, do cimo da figueira da entada da propriedade, foi uma visão feliz. Concluí nesse momento que as melhores paisagens são feitas de pessoas. E o melhor do que as pessoas são os amigos”. Com a morte do pai, a casa é inundada com um cheiro que, mais tarde, trará a mudança.
A Fernanda da Farmácia foi a descoberta do “coração aos pulos”, dos “arrepios pelo corpo, os lábios cada vez mais perto, uma eternidade mais perto, os pêlos dos braços eriçados“, mas também do desalento. Habituou-se à sua presença serena, amiga da mãe, uma sombra presente para recordar os votos feitos no dia do casamento.
A grande mudança da sua vida dá-se com a chegada da nova empregada. A verdadeira paixão é sentida como nunca, “já que não era capaz de pensar noutra coisa. Era o amor em botão”. Conheceu o verdadeiro amor, a verdadeira felicidade que guardou em segredo, tal como o “figo é a tal flor que floresce para dentro, em segredo, que não sabe expor-se ou não quer expor-se”. Nasce assim uma história de amor, com esporádicos momentos de felicidade.
“Princípio de Karenina” nasce de cruzamentos de geografias, identidades, encontros e desencontros, de uma “viagem ao Vietname e ao Camboja“ com o objectivo de “encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo”. É um “encontro de ingredientes de várias proveniências”, que são simultaneamente “remédio e alimento”, tal como os poderes milagrosos da curcuma, que cura “todas as maleitas” e “tingiu a minha vida toda. Não saíra com os anos”.
É a narrativa de um menino que cresce e se torna homem. Uma história da procura de si mesmo, da felicidade. Uma história intimista, de arrependimento, desilusão e obsessão, onde os momentos fugazes são valiosos para a felicidade. Afinal, o que é isso de ser feliz? Tal como é dito em “Anna Karenina”, “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Foi assim com o protagonista. É assim com todos nós.
Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta, músico. Nasceu em 1971, na Figueira da Foz, e viria a frequentar mais tarde a Escola António Arroio, em Lisboa, e a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, assim como o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. Já visitou mais de cinquenta países de todo o mundo. Conquistou vários prémios literários e de ilustração.
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