Cat Power (nome de palco de Chan Marshall) contou a história numa entrevista recente ao New York Times. Imaginem a cena: numa sala de reuniões cinzentona, alguém da Matador – a antiga editora de Marshall – terá posto a tocar um disco da Adele, dizendo à artista algo como “está a ver? Isto é que é um hit, é isto que a gente quer”.
A cantora havia levado para a reunião o seu 10º álbum, a editora torceu o nariz ao resultado, Cat Power torceu o nariz à editora e zás, lá se vai uma relação de 20 anos de trabalho para o galheiro.
“Wanderer” (Domino Records, 2018) acabou por sair com o selo da Domino, e é um álbum fascinante: sombrio e minimal, recheado de pequenas pérolas intemporais, muito distante do anterior “Sun” de 2012, um objecto mais luminoso, mais chegado à pop electrónica.
O disco começa com o tema-título, “Wanderer”, quase como manifesto do que aí vem – apenas um minuto e catorze segundos de harmonias vocais, cantadas à capella, sem instrumentos à vista, de uma confiança e beleza desarmante. Segue-se sem demoras um dos pontos altos, a genial e soturna “In Your Face”. Muito jazzy, tira total partido da voz aveludada de Chan Marshall, recortada contra uma melodia simples de piano. A doçura da voz contrasta com a acidez da letra, subtilmente anti-Trump.
A sonoridade deste disco vive da relação simples entre voz, guitarra e piano – um exemplo é a minimal “Nothing Really Matters”, a provar que Cat Power precisa de pouca matéria-prima para fazer grandes canções. “Stay”, uma versão do mega-êxito de Rihanna, surge aqui completamente removida desse contexto – é uma canção hipnótica, frágil como cristal e carregada de emoção.
Marshall contou com a voz de Lana del Rey para construir “Woman”, uma das peças centrais do disco – o tema é uma celebração, um grito de guerra cheio de júbilo e auto-confiança. Há ainda a nocturna “Black”, uma vaporosa dança com o anjo da morte, a transpirar “blues” por todos os poros; a atmosférica “Robbin Hood”, esquisso de guitarra acústica e percussão, despida até ao osso; e a balada quase Mariachi chamada “Me Voy”, uma vagarosa procissão pelas ruas poeirentas de uma qualquer aldeia mexicana.
“Wanderer” é um triunfo tranquilo, uma jóia discreta e recatada, que esconde uma fúria em lume brando – foi a própria Cat Power que produziu o disco, e as 11 canções são um testemunho da boa forma que a artista atravessa. Há, de certeza, muita gente na sede da Matador a roer-se de arrependimento. Se os discos pudessem sorrir, este teria um largo e aguçado sorriso de desafio.
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