Para quem anda agora pela casa dos quarenta, uma série televisiva houve que, nos tempos da criancice, deixou marcas profundas. E não pelo facto de ter chegado na língua de nuestros hermanos que, só por si, poderia provocar alguma estranheza ou irritação no canal auditivo, mas antes por ter terminado de uma forma trágica equivalente ao cortar de pulsos na banheira por uma estrela rock em decadência. Felizmente, no ano em que decidiu usar o lema “Amor de Verão” como estampa e assinatura, o Bons Sons ficou a milhas da melancolia irradiada nesse “Verão Azul”, caminhando em passo de dança e sempre em “Boa Companhia”, mostrando que em Cem Soldos mora, como tão bem o diz a cantar Luís Severo, “aquele amor de Verão que não morre com a idade“.
O Bons Sons é um festival diferente, e não apenas por, desde cedo, ter revelado uma costela ecológica – o que se reflecte nos sacos diferenciados para reciclagem espalhados pela aldeia, na eliminação dos copos descartáveis, nos pratos comestíveis feitos de farelo de trigo (pena terem esgotado cedo, nem provámos um sequer), nas casas de banho secas ou nos estranhos urinóis fardo de palha dispostos no parque de campismo – ou, e isto é muito bom, se poder beber uma cerveja de 0,33cl ao preço de uma tasca no Bairro Alto.
Em Cem Soldos a atmosfera é realmente incrível, um cruzamento entre o interior esquecido e a mais ou menos sobranceira litoralidade, onde o espírito comum é o mesmo: viver a aldeia. Uma aldeia que tão bem sabe receber e que, este ano, tinha espalhado em paredes, degraus ou recantos mais ou menos evidentes, pedaços de letras das bandas desta edição, impressos a partir de stencils ou em bonitos azulejos, do qual retivemos, por exemplo, este muito castiço verso de Zeca Medeiros: “É que eu gosto tanto de ti que até me prejudico”.
Um festival que tanto serve a famílias com bebés de colo como para amigos em tempos de puberdade, que chegam ao parque de campismo prolongando a festa e levando à loucura aqueles que tentam fechar a pestana. Onde se pode ver a bola e fazer amigos instantaneamente ou conversar com a vizinhança que espreita à janela ou passeia carregada de orgulho na sua rua. Onde se experimentam as invenções de madeira do Hélder ou se joga uma cartada enquanto se espera um concerto. Onde se come, numa das abençoadas mesas de madeira, aquilo que se leva de casa para poupar uns trocos.
Este ano a aldeia pareceu ter encolhido para receber tanta gente, tendo provavelmente ficado a centímetros da lotação máxima. Quanto ao novo palco Zeca Afonso, não ajudou ter sido plantado numa pequena floresta, o que retirou alguma visibilidade em muitos locais do anfiteatro. Já o sistema cashless, que levou o clássico sistema de senhas à estratosfera digital, revelou-se um sucesso, até porque permitia a devolução do dinheiro que não tivesse sido gasto – ou que aquele amigo preguiçoso estivesse sempre a cravar-nos para ir buscar uma cerveja.
Numa edição onde o cartaz musical foi um dos melhores de sempre, ficam alguns apontamentos: Salvador Sobral não conseguiu o silêncio que pretendia e que seria de ouro, mas teve engenho suficiente para amar uma praça inteira, empurrado pelas teclas de Júlio Resende; S. Pedro assinou um concerto de todo o tamanho, saindo-se com arranjos ainda mais trabalhados e grandiosos do que aqueles que fizeram as delícias numa rodela chamada “Fim”; Mazgani e Sean Riley & The Slowriders puseram os dedos na tomada e atiraram com a pop às urtigas, servindo rock `n` roll em estado pré-corte; Sara Savares e Selma Uamusse levaram a lusofonia ao patamar mais alto, ainda havendo tempo para a primeira apadrinhar um casamento e a segunda mostrar como se dança de saltos altos; os Dead Combo deram uma festa tremenda, viajando entre o seu lado mais experimental e temas tão luminosos que convidam a saltar com molas; Slow J veio acompanhado de Fred Ferreira (bateria) e Francis Dale (teclas e guitarra), mostrando que no que toca ao hip hop em Portugal é ele que tem de momento a melhor mão; quanto a Luís Severo, vestido a rigor com as cores do Oriental, assinou um concerto tremendo antes de sol aterrar, quer em formato banda – correu mil vezes melhor que o concerto do Primavera Sound – quer sozinho ao piano ou à guitarra. O mais sentido amor de Verão regressa em 2019. Por aqui juramos fidelidade.
Fotos: Madalena Pintão
Galerias Fotográficas:
Retratos
Dead Combo
Luís Severo
Zeca Medeiros
Sean Riley & The Slowriders
João Afonso
Mazgani
Sara Tavares
S. Pedro
Tomara
The Lemon Lovers
Slow J
Selma Uamusse
Jerónimo
Salvador Sobral
Sem Comentários