Até há cerca de dez anos, se tivéssemos de escolher dois livros que ilustrassem toda a sumptuosidade, beleza e mistério que se escondem dentro de uma Biblioteca, provavelmente seríamos tentados a tirar, das estantes, “A biblioteca”, de Umberto Eco, e “A Biblioteca de Babel”, conto de Jorge Luis Borges que integra a colectânea “Ficções”. Se o primeiro nos levava a sonhar com a biblioteca ideal, o segundo apresentava o próprio mundo como uma Biblioteca infindável, esbatendo todas as fronteiras entre vida e literatura.
Publicado originalmente em 2002 – primeira edição portuguesa em 2005, “A biblioteca” (Cavalo de Ferro, 2015), do sérvio Zoran Zivković, vem juntar-se aos livros de Eco e Borges como um testemunho da experiência do livro e da leitura, oferecendo uma viagem de ida ao mundo dos livros com umas valentes pinceladas e gosto pelo fantástico.
São seis os contos presentes neste volume que, ainda que de certa forma evoquem o mestre Borges, dele se afastam tranquilamente, tanto pela escrita muito própria de Zivković como, sobretudo, pelo facto de o livro se tornar o próprio protagonista da história, algo bastante presente na obra deste escritor – falaremos de “O grande manuscrito” na próxima semana.
A partir de um spam mail, “A biblioteca virtual” faz-nos entrar numa app futurista, onde os escritores – e só eles – podem aceder – e apenas por uma vez – aos próprios livros, os que escreveram e aqueles que escreverão, qualquer coisa como um obituário literário em vida que aponta o dedo aos direitos de autor e à falta destes; “A biblioteca particular” representa uma sátira ao nascimento das bibliotecas pessoais, nascida a partir de uma caixa de correio mágica que, de cada vez que é aberta, oferece um novo volume do mesmo livro, fazendo com que o protagonista vá perdendo cada vez mais espaço no seu exíguo apartamento; “A biblioteca nocturna” funciona fora do habitual horário de expediente, onde os livros se assemelham a pastas arquivadoras controladas por uma polícia literária secreta; Em “A biblioteca infernal” somos conduzidos ao gabinete do secretário do próprio diabo, que nos conta uma moderna verdade com espírito reformador: «Cada época tem o seu próprio inferno. Agora é uma biblioteca»; “A biblioteca minimal” convida-nos a gastar algum dinheiro no mercado livreiro da Ponte Grande, onde um cego parece conhecer todos os desejos literários de quem passa pela sua banca. Sobretudo dos escritores que têm dificuldade em escrever, como o protagonista desta história, a quem é dado um livro que muda de título de cada vez que é aberto, sendo impossível de fotocopiar, fotografar ou digitalizar; “A biblioteca requintada” fecha com chave de ouro esta meia dúzia de contos, num livro que por muito que seja queimado, afogado ou deitado fora volta sempre ao seu lugar na estante. Uma crítica aos livros de bolso e à impiedosa indústria do dinheiro fácil, que termina com um twist formidável repleto de ironia e boa disposição.
Vencedor improvável do World Fantasy Award em 2013, “A biblioteca” é ao mesmo tempo um livro desconcertante e divertido, que nos aproxima, pela via do fantástico, do maravilhoso mundo dos livros e da criação literária.
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