Portugal parece ter descoberto o turismo e, nos últimos anos, aparentemente deslumbrado com a torrente de visitantes e os elogios bonitos de muito boa gente, tem apostado num modelo intensivo que está a transformar o país no Algarve (se ainda tivéssemos os exemplos de Veneza ou Barcelona para nos ensinar…) E, no entanto, os Açores surgem em contracorrente com tudo isto. Perante o boom turístico no arquipélago graças ao aparecimento das companhias aéreas low cost, o governo Açoriano anunciou uma estratégia diferente, que passa, inclusive, por obter uma certificação de destino sustentável.
Apesar de ser uma “coincidência temporal“, o festival Tremor, que este ano assinalará a sua quinta edição na ilha de São Miguel, segue também esta estratégia, integrada e sustentada na “relação com a comunidade, que pretende um Açores contemporâneo, mas humanizado“. Quem o diz é António Pedro Lopes, o director artístico do certame, que explica que essas estratégias semelhantes não são propositadas – até porque o Tremor surgiu antes do advento do low cost e do aumento do turismo no arquipélago.
No entanto, garante que “o festival não mudou por causa disso“, apesar de todos os benefícios que trouxe. Agora, “os acessos estão mais facilitados e Ponta Delgada, que sentia muito a crise, está transformada“. Para melhor, claro, com “novos espaços e novos fluxos“. António Pedro Lopes dá o exemplo do Largo da Matriz, que era “um lugar fantasma” e onde agora houve “uma explosão de cafés, bares e hostels“.
O objectivo do Tremor, um “festival muito elástico” que se vai adaptando ao território e às suas transformações, passa então por “descobrir novas formas de fruir a música“. “É um festival de experiência“, refere o director artístico, que confessa o desejo de este “reinventar a ideia pré-concebida dos Açores, convidando o público a descobrir” São Miguel. O Tremor estende-se assim por toda a ilha, incluindo locais menos convencionais – e alguns até surpresa.
António Pedro Lopes explica que a programação do Tremor, feita a três mãos entre si, a Yuzin e a Lovers & Lollypops, nasce dos seus “gostos ecléticos” e sempre do “diálogo entre as propostas artísticas e o que os espaços podem oferecer“. “Depende sempre de diversos factores, como o horários ou mesmo as expectativas“, acrescenta. No cartaz deste ano encontramos, só em concertos, mais de 40 propostas, entre nomes nacionais conceituados como os Três Tristes Tigres ou os Dead Combo, até artistas internacionais como Mdou Moctar ou os Boogarins. E há ainda a proposta que Daniel Blaufuks leva ao Hotel Monte Palace, o “icónico hotel açoriano que está totalmente abandonado apesar de ter a melhor vista para a Lagoa das Sete Cidades“, no qual vai apresentar um filme com a Banda Lira Sete Cidades, “que faz um requiem por aquele pedaço de história e um marco muito presente na vida das pessoas“.
No entanto, uma das principais características que é transversal ao programa desta edição do Tremor é a atenção às questões de género, ao feminismo e à problemática racial. António Pedro Lopes reconhece que o festival vai em “consonância com os movimentos de denúncia” que marcaram 2017, como o #metoo ou o Time’s Up, destacando a presença de artistas como Mykki Blanco ou Baby Dee, mas também a fotógrafa Pauliana Valente Pimentel, que apresentará a exposição “O narcisismo das pequenas diferenças”, que reflecte sobre o futuro, questões de géneros e a juventude nos Açores. Estes nomes são “muito fortes do ponto de vista performativo e com uma mensagem política, que carregam no seu trabalho uma visão do mundo“, acrescenta o director artístico. Tudo isto faz ainda mais sentido quando se está numa ilha que continua a ser “conservadora” e, como tal, “pode aqui confrontar-se com outras ideias“.
O Tremor é assim um festival “muito livre e sem medos“, muito “ligado à descoberta e à discussão e não tanto ao comércio e ao consumo“. António Pedro Lopes revela que não é fácil fazer um certame destes numa ilha, mas acrescenta que “os obstáculos mais difíceis são os mais bonitos de ultrapassar“. E o certo é que, pelo menos durante uma semana – mais propriamente entre os dias 20 e 24 de Março -, a ilha de São Miguel deixa por momentos de ser um destino periférico no panorama nacional e assume-se como destino privilegiado da melhor música que a agenda festivaleira portuguesa tem para oferecer. Desta vez, as réplicas vão mesmo chegar ao continente.
Fotos: Carlos Cabral de Melo
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