O título do último romance de Nuno Amado poderia facilmente ser completado com o seguinte subtítulo: existem segundos que só podem ser vividos em mundos paralelos, segundos roubados aos relógios da realidade. É precisamente a partir desses segundos, tão perenes e ao mesmo tão perecíveis, que o autor constrói uma narrativa viciante, onde o leitor viaja entre gerações e conhece dois familiares, Helena e Carlos, bem como uma tia e o seu sobrinho-neto, numa relação de admiração e sofrimento – sentimento esse facilmente associado a mal entendidos típicos das famílias.
“O amor é um ditador que, em nome da sua utopia, tem de destruir tudo o que o precedeu. E, quando o ditador é deposto, quando as suas políticas fracassam, quando é assassinado ou foge para um exílio distante, sucede-se a guerra, o caos, o vazio.”
Não serão fossos tão grandes os narrados pelo autor e vividos por duas gerações da família Remington mas, ainda assim, são grandes o suficiente para se cruzarem ao longo de mais de 30 anos, deixando marcas profundas em mais do que uma família e culpa suficiente para fundar uma religião.
“A ideia de se terem perdido um do outro para sempre colou-lhe uma mágoa fria e pegajosa à pele. Tudo lhe pareceu absurdo.
(…)
A revolta quase a consumiu. Passou meses intoxicando-se com desprezo, (…) deixou de ver propósito no passar das horas; por ela podiam parar todos os relógios, (…) Tudo lhe sabia a cinzas.”
Nuno Amado consegue recriar, em “Parem Todos os Relógios” (Oficina do Livro, 2018), um melodrama intenso e já pouco dado aos tempos de hoje, com muita fluidez e uma forma enovelada com que cruza ambas as histórias. Três, aliás, pois Francesca tem direito a pequenos pedaços só dela – fragmentados, é certo, mas que sabem cativar o leitor que, no final, gostaria de continuar a viajar por Itália na companhia de Francesca.
“Era inevitável, pensa Helena. As mulheres têm de pagar sempre pelos pecados dos homens que amam. Assim fora com Costanza, assim era agora com ela e com Isabella. Valeria a pena. (…) Bermini quisera possuir a beleza de Costanza. Fizera-o com o seu sexo, o seu escopro e a faca do seu servo. Ao desfigurar a modelo, a sua escultura seria o único vestígio dessa beleza, um resquício feito por si, assinado com o seu nome. E nesses três gestos estava tudo o que a paixão pode fazer: esquecer-se do mundo, criar e destruir.“
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