Caneca de café pousada no parapeito. Café longo como qualquer manhã de sábado. Cruza os braços e deixa passar o nada. Chicago e a memória de há 15 anos, no cruzamento entre a N. Hoyne Avenue e a Augusta Boulevard, quando compartia casa com Josephine Foster. Poderia ser a imagem de Ka Baird. No intervalo entre o concerto dela e o de Josephine Foster, na passada quarta-feira, naquele recanto encostado à porta do aquário e o caminho para as casas de banho, decidimos abordar Ka, dizer-lhe o quanto tínhamos gostado do que vimos. Gesto pouco comum: afinal não são assim tantos os que nos marcam, mas momentos há em que as palavras devem ter endereço. Agradeceu de sorriso aberto, fita a prender cabelo encaracolado, com ar agitado de quem procura a chave no momento de aflição e tempo para nos dizer que partilhou apartamento com Josephine Foster, em Chicago, há 15 anos – certamente não naquele cruzamento, mas entre muitas memórias da folk, naquele tempo mais um ponto de união entre as duas.
Continuar a desenhar a biografia de um autor não é exercício de todo desinteressante, sobretudo porque nos aproxima de um trabalho de detective, da procura das memórias, dos pontos, das diferentes contaminações, da reconstrução dos percursos. Quando é que Ka decidiu abandonar a folk e enveredar por outras experiências sonoras? Terá a mudança para Brooklyn sido essencial nessa transição? E os concertos com Josh Abrams, terão tido alguma influência? Em que momento terá tido contacto com as obras de J. B. S. Haldane e de Aleksandr Oparin? Que processos seguiu de modo a incorporar as tabelas de mergulho do primeiro com os estudos sobre a origem da vida do segundo na malha sonora que vai construindo?
Se concerto é construção, este foi certamente um deles. Se concerto é performance, então não há dúvida. Se concerto é abrir a caixa de memórias, este é sintomático. Se concerto é acto iniciático, confere. O mais recente trabalho de Ka, Sapropelic Pycnic (Drag City, 2017), mesmo numa audição descuidada, é revelador de um universo de cruzamentos bastante diversificado – o uso do piano e sintetizadores de um modo não convencional, a voz como um instrumento de sopro onde os sons lançados são pequenos turbilhões, a construção dos loops proporcionada, não como resultado mas parte de um processo; e a flauta transversal, ora servindo de ligação entre as partes ora como marcação de uma nova subtileza.
A expectativa era alta e não saiu defraudada. As luzes/manchas trabalhadas nas tonalidades vermelho, azul como um magma flutuante, não acto ilustrativo antes definidor da sua atmosfera. Movimentos no palco como que à procura de uma composição molecular, novamente um sopro lançado da flauta e sobreposto à camada anteriormente criada. Ka é mantra psicadélico, estado puro de elevação, é buscar referências múltiplas e começarmos a fervilhar com possíveis ajuntamentos da tribo – como resultaria bem outra flauta, quem sabe a da Violeta Azevedo, mais a voz da Marta Ângelo (Calhau!) ou do Bernardo Devlin, um apontamento do Ferrandini ou do Zíngaro.
Se concerto é estender momentos no tempo este foi um deles. Na felicidade do dia seguinte, no Banco, com a performance da Filipa Cordeiro.
Fotografia: Lais Pereira/Galeria Zé dos Bois
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