Se nos atrevermos a traçar o perfil de alguns dos principais festivais de música nacionais em poucas palavras, a coisa andará mais ou menos assim: o NOS Alive tem o cartaz, o estardalhaço sonoro que se impõe e camones que nunca mais acabam; o Super Bock Super Rock oferece as melhores vistas urbanas sobre o Tejo, grandes cartazes de quando em vez, acessos de primeira e uma arena onde o som não ultrapassa, normalmente, o “nível manhoso”; Paredes de Coura tem um verde que arrepia, concertos a roçar o épico e um anfiteatro (não) natural onde até mesmo um baixote consegue ver quem anda em cima do palco; o Primavera Sound tem o hype, o selo da internacionalização e um pulmão esverdeado no meio de uma selva urbana. Até aqui tudo bem. Há, no entanto, um festival com menos alguns centímetros que, ano após ano, vai lutando ombro a ombro com todos estes, e que, qual David erguendo um destemido manguito ao gigante Golias, trata de oferecer algo de único que, se convertido em palavra única, resultaria em qualquer coisa como alma.
Estamos em Cem Soldos, uma orgulhosa aldeia situada a cerca de quatro quilómetros de Tomar, lugar onde, desde o ano de 2006, se realiza o Bons Sons, a mais sumarenta mostra do que se vai criando musicalmente em Portugal. Pensado inicialmente como um evento bienal, o Bons Sons foi crescendo em atitude e cartaz até 2015, altura em que deu o salto para se tornar num evento – por lá não gostam que se chame festival – anual, que nesta edição de 2017 levou à aldeia cerca de 32500 visitantes.
O ADN do Bons Sons está carregado de espírito comunitário, vivendo do acreditar das pessoas de Cem Soldos, do fôlego do Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS) – a associação cultural local -, do voluntariado e, sobretudo, do espírito visionário de Luís Ferreira, que conseguiu criar algo onde cada Cem Soldense se reconhece e onde dá o que tem, sabendo que mora ali um motor para o desenvolvimento local, que ajuda a fixar os mais jovens e a criar uma dinâmica de vida na associação e na aldeia.
As preocupações ambientais estão todas lá, desde a disponibilização de cinzeiros-pipeta, copos de plástico ou canecas de alumínio para reduzir o desperdício e manter o espaço público mais aprazível, ecopontos para a reciclagem ou o facto de os dejectos serem aproveitados para servir de adubo, seguindo a velha máxima de Lavoisier: aqui nada se perde, tudo se transforma.
Há quintais transformados em restaurantes que servem pataniscas, bacalhau em lascas ou grelhadas mistas, com acompanhamentos que podem ir das migas às batatas à lagareiro. Há, também, um pequeno paraíso que aos doces conventuais junta pães com chouriço ou farinheira, sendo cada nova fornada anunciada a toque de sino. Há mini-mercados que vendem um pouco de tudo, até litrosas de cerveja importada com ar de imitação. Há lugares onde se pode comer comida picante, ou outros que permitem viajar no tempo para comer um sorvete em bolacha daquelas que já não se encontram nas gelatarias citadinas. Ou, ainda, o indispensável Café Tonita, que para além de comida e bebida vai servindo de templo aos que, mesmo entre boa música, querem espreitar o jogo do clube do coração. Salta-se à corda, entra-se em lutas de pistola de água galácticas, recupera-se a energia pedida no tapete que faz lembrar relva, num festivo encontro de gerações.
Este ano, se o Auditório ofereceu performances artísticas, passagem de curtas-metragens e outras experiências culturais, o destaque maior foi sem dúvida para os Jogos do Helder, feitos de madeira, corda, campainhas e muita imaginação, que puseram miúdos e graúdos a vibrar à séria, esquecendo por horas o entretenimento digital que vai fazendo do jogo um acto solitário.
Em termos musicais, esta edição de 2017 – que se realizou entre os dias 11 e 14 de Agosto – ofereceu um cartaz de luxo, apresentando nomes consagrados e outros que começam a entrar no radar dos ouvintes mais atentos. Daquilo a que assistimos, ficam alguns destaques: Marco Luz aliou o virtuosismo à exploração musical, num concerto de guitarra com gravador de pistas que deixou a curiosidade aguçada para o seu segundo disco, que está ainda a marinar; os Whales trouxeram ao coreto improvisado o espírito disco, mostrando que se pode abanar o esqueleto mesmo quando estão para cima de trinta graus de temperatura; os Holy Nothing estiveram em modo vertigem, contagiando o público com o seu laboratório de sintetizadores e uma armada de groove boxes a que não faltou um toque refinado de humanidade; Frankie Chavez encarnou o espírito do rock `n` roll, dedilhando como se a salvação do mundo estivesse nas cordas de uma guitarra eléctrica; José Cid e companhia levaram-nos numa viagem incrível entre Cem Soldos e Marte, revisitando um disco de 1978 que soou como uma verdadeira pérola. Quanto a Samuel Úria, fez jus ao epíteto de maior escritor de canções cá do burgo, num concerto do cacete onde aos clássicos de “Carga de Ombro” e de discos mais recentes se juntaram outros tão inesperados – mas bem recebidos – como “Ninivita”, que resultaram numa abençoada molhada.
Há dois anos, em entrevista para o Deus Me Livro, Luís Ferreira apontava diversas razões para uma ida a Cem Soldos, deixando então um convite em estilo de polegar para cima: “É dizerem “estes gajos estão a ir no caminho certo”, e virem até cá poderá ser uma forma de credibilizar, de apoiar e de dizer “estamos com vocês”.” A verdade é que, dois anos depois destas palavras, são muitos os que vêm à aldeia fazer a festa e mostrar apoio, entre novos descobridores e sobretudo repetentes, que já não conseguem passar um ano sem viver a experiência da aldeia. Palavra de Deus Me Livro.
Fotos de Luísa Velez.
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