“Eu sou nigeriano, porque o homem branco criou a Nigéria e me deu essa identidade. Sou negro, porque os brancos construíram o conceito de «negro» de modo a que fosse o mais distante possível do «branco». Mas antes de os brancos aqui chegarem já eu ira ibo.”
É entre ibos e haúças que entramos, desenfreadamente, por este “Meio Sol Amarelo” (D. Quixote, 2017 – reedição), e nos vamos deixando levar pela escrita escorreita de Chimamanda Ngozi Adiche, num livro ao qual não se podia pedir mais. Um romance com um toque histórico, mas como todos os romances históricos deviam ser: apaixonantes, com personagens capazes de nos despertar os sentidos e de nos ensinarem um pouco do que foi ou é a História de um povo, de um país, mas sem fatigar o leitor com detalhes de modo exaustivo ou enciclopédico.
Vamos descobrindo Ugwu, Odenigbo (o patrão) ou Olanna e a gémea Kainene, mas também Richard ou Okonji, através de descrições muito bem conseguidas, seja dos sorrisos que têm, do tom de voz que empregam quando debatem uma ideia ou até como, sem dizerem nada, conseguem ser caracterizados por acções e olhares, brilhantemente conseguidos pela autora, de forma simples mas tocante.
“– Somos gémeas – disse ela, e calou-se por um instante, como se estivesse prestes a fazer uma grande revelação.
– Kainene e Olanna. O nome dela tem o significado lírico de «ouro de Deus», e o meu o sentido prático de «vejamos o que Deus nos traz»”.
«Ver o que Deus lhes reserva» é o que o leitor faz durante todo o romance, seja pelo rumo histórico da guerra na Nigéria, mais propriamente a época em que a República do Biafra se constituiu e quis ser independente da Nigéria – diferenciando ainda mais o Norte e o Sul do país, juntamente com questões étnicas entre ibus, iorubas e haúças -, ou pelo lado religioso e económico – e, claro, o peso da anterior colonização britânica. É nesta incursão por aquele que foi um curto período da História da Nigéria que passamos a conhecer o significado do título, estabelecendo-se todo o cenário que alterará o curso destas vidas.
A forma como a política entra neste livro foi muito bem engendrada pela autora, com aqueles serões na casa de Odenigbo ou pela forma como coloca Ugwu nos bastidores com as suas tentativas de compreensão, ensinando e divertindo ao mesmo tempo. É preciso mestria e nem todos a têm. Até a forma como a personagem de Okeoma surge, com os seus poemas, ou os excertos do livro que Richard queria escrever, são formas muito interessantes de meter uma história dentro de outra – e sempre com pontos de vista que tanto se completam como se afastam, incitando a discussão no grupo.
“– Tu é que não estás a ver as coisas como elas realmente são!
– Odenigbo mexeu-se na cadeira, nervoso. – Estamos a viver um período de grande maldade branca. Eles andam a desumanizar os negros na África do Sul e na Rodésia, fomentaram o que aconteceu no Congo, não deixam os negros americanos votarem, não deixam os aborígenes australianos votar, mas o pior é o que estão a fazer aqui. Este pacto de defesa é pior que o _apartheid _e do que a segregação, nós é que não nos estamos a aperceber disso. Eles estão a controlar-nos a partir dos bastidores, o que é extremamente perigoso!”
A narrativa está recheada de discursos quentes, uns mais inflamados que outros, sejam os de pendor político ou os que avançam no romance e na vida destes dois casais e de quem orbita em seu redor. A própria forma como, cronologicamente, o livro nos é apresentado, do início dos anos 60 para o final – e depois novamente o início antes de termos o desfecho final -, contribui para o lermos impacientemente, quase como se o destino daqueles personagens dependesse da nossa velocidade de impedir acontecimentos terríveis e marcantes.
“Nasceu o Biafra! Seremos os líderes da África Negra! Viveremos em segurança! Nunca mais ninguém nos atacará! Nunca mais! Odenigbo ergueu o braço enquanto falava com Olanna lembrou-se de como o braço da Tia Ifeka lhe parecera todo torcido quando ela jazia no chão, da maneira como o sangue se empoçara, tão espesso que parecia cola e quase preto em vez de vermelho. Talvez a Tia Ifeka estivesse a ver aquele comício naquele instante, e todas aquelas pessoas, ou talvez não, talvez a morte fosse uma silenciosa opacidade. Olanna sacudiu a cabeça para afugentar esses pensamentos, tirou Bebé do pescoço de Ugwu e abraçou-a junto ao peito.”
O Biafra nasceu, mas não continuou como eles desejaram. Como acontece com muitos sonhos. A paz desejada e o amor que os unia sofreu provações, e a maneira de continuarem unidos é talvez a maior história para além da História de uma parte da Nigéria.
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