Passou quase um ano desde que Samuel Úria, provavelmente o melhor escritor de canções cá do burgo, nos abalroou com uma “Carga de Ombro” capaz de provocar inveja nos jogadores mais rijos e musculados que por aí andam a pisar relva. Com concerto marcado para dia 27 de Maio, no Teatro Tivoli BBVA, e uma ida assegurada ao Bons Sons, em Agosto, o Deus Me Livro convidou Úria a revisitar “Carga de Ombro”. Um disco sobre a fé que, de tão bom, conseguirá converter até o ateu mais céptico. Palavra de Úria.
Pode dizer-se que “Carga de Ombro” é um disco sobre a fé ou, pelo menos, a tua visão sobre o que esta representa nos dias de hoje e a dificuldade cada vez maior de acreditar em algo superior a nós?
Não diria que o centro do disco esteja na dificuldade de acreditar; quando muito a parte difícil está numa vida em consonância com aquilo em que acreditamos. Não é tanto um disco sobre a fé, enquanto grande tema, é mais um conjunto de balanços sobre uma identidade que tem a fé como adquirida.
Pergunto-te isto porque a religião parece constituir uma parte fundamental da tua vida. Ainda assim, dá a ideia de que tua fé está sujeita a um eterno questionamento, seja interrogando quem nos segura a corda numa mão maior como, também, a nós próprios. A fé é uma dúvida permanente?
Pelo contrário, a fé é uma certeza permanente, até por isso mais se questiona. É o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem. Não faria sentido dedicar a vida a testar e questionar uma coisa que não nos interessa ou não nos diz respeito. Por ser uma certeza, entre a escolha e a inevitabilidade, é que mais se esmiúça, mais se debate, mais se controverte. Há esforço para a dúvida, não há é uma tendência de dúvida. E, partindo a fé de uma coisa que consideramos certa (nos 3 sentidos: acertada, real e iminente), a maior dúvida acaba por ser aquela que o Kristofferson canta: “Why me, Lord?”.
Para quem tem seguido os teus discos, desde os tempos em que estes chegavam em cd’s graváveis sem qualquer escrito na rodela, este “Carga de Ombro” é orgulhosamente escrito na primeira pessoa e a preceito. Escreveste aqui um diário musical?
Pela toada confessional, é justo dizer-se isso, embora o diário implique uma rotina e uma sequência que não consigo seguir. Gosto muito de trabalhar para álbuns, e tenho a certeza que as notas íntimas, tal como num diário, garantem o conceito e a coesão de ideais que procuro nos discos. Ainda assim, não há sequência nem a disciplina dum diário, porque gosto de usar anacronismos e memórias, mais do que balanços e crónicas imediatas.
“É preciso que eu diminua” tem o ar de um manguito feito aos que vão dizendo que o Samuel Úria dos tempos das edições rústicas da Flor Caveira é que era bom. Lidas bem com as mudanças de humor de quem te vai ouvindo?
Lido muito bem, até porque a desconfiança que algumas pessoas manifestam para com a música que faço agora é, muitas vezes, um voto de plena confiança na música que já fiz (e, consequentemente, em mim). Não me parece, contudo, que sejam mudanças de humor; é mais um humor tão constante que não quer admitir as minhas mudanças. A questão é que eu só consigo fazer certas afirmações (e interessa-me esse lado afirmativo) se me tornar desagradável para certos ouvidos, e o caminho mais rápido para me tornar desagradável para certos ouvidos é tornar-me agradável a outros tantos. Sacrifico conscientemente a estética pela ética, mas sempre com a consciência de que não me tresmalhei, e que posso voltar a fazer as coisas menos polidas que me caracterizaram. O lo-fi florcaveiriano não é só um património do passado, é um património, ponto.
A tua escrita é feita de enigmas, muita poesia e a recriação do imaginário e léxico popular, onde se podem descobrir expressões como “tripas coacção” ou “karma pra canhão”. Escrever canções é reinventar a linguagem?
Creio que sim. É essa a beleza da música pop: poder servir-se de qualquer tipo de discurso e poder servir qualquer tipo de discurso. As canções têm esse contra-senso de estarem restringidas a métricas e a rimas, mas depois não serem limitadas em termos de ideias, processos, vernáculos ou recursos estilísticos. No processo de meter o Rossio na Bestega – um património inesgotável dentro de regras apertadas – a língua reinventa-se.
“Carga de Ombro” – a canção – poderia ter sido escrito como pedido de casamento, juntando ombros e nomes debaixo de um mesmo tecto. Nesta sociedade hi-tech, que adora à distância e beija digitalmente, que papel está reservado ao amor?
Devia ser o papel de resgate. O contra-ponto para a distância e para a impessoalidade devia ser a maior das proximidades: o amor. Se intensificamos o que nos mantem separados, temos de intensificar o esforço naquilo que nos mantém juntos. Por isso é que cada encosto conta, cada carga compromete. Já que a tecnologia diz que não precisamos do outro junto a nós, então devemos encostar-nos com a intencionalidade dos “até que a morte nos separe” para mostrar quem manda.
De onde surgiu a ideia de compor um tema sobre o amor mais profundo usando uma expressão da gíria futebolística?
Não parti desse termo técnico futebolístico para escrever a canção, mas ele acabou por aparecer porque correspondia a vários factores: servia na perfeição a ideia, tinha a ambiguidade necessária para eu poder induzir outras ideias, e era um termo razoavelmente reconhecível, o que é sempre um reforço da ideia. Gosto muito desta noção de que uma expressão técnica e de menor relevo pode auxiliar os assuntos nada técnicos e nada irrelevantes. Como ferramenta poética, também estou convencido que desterrar um termo popular para fora da sua natureza causa a estranheza necessária para captar atenções. A prova disso é esta pergunta.
E poderá esta carga de ombro representar um mantra para a vida, estilo bater mas com jeitinho, evitando fazer pontaria às canelas e os cartões amarelos e vermelhos?
É um mantra para vida, exactamente. Haverá cartões e faltas, porque é assim a vida, mas interessa jogar para vencer. Jogar para assistir.
Em “Graça-Comum”, somos colocados perante a encruzilhada do destino. Feitas as contas, devemos viver fora da caixa ou aceitar o inevitável e esperar sentados?
Viver fora da caixa é uma ambição devidamente encaixada, embalada e etiquetada. E o inevitável não tem de ser esperar sentado, pode ser esperar de pé e ser resoluto em direcção à inevitabilidade.
“Repressão” fala-nos dos tempos das causas tolas, onde se confunde o bem com não ser vilão, se prefere o gourmet à comida caseira e onde qualquer causa, por muito parva que seja, é boa num refrão. Será esta sociedade cada vez mais dada à futilidade?
Acho que sim, mas são umas dores que todas as gerações sentem. Desde sempre houve esta sensação de que as coisas relevantes estão em risco de extinção por serem malbaratadas, ou preteridas em desfavor de outras mais fúteis. Mas também acho que noutros tempos os mais conservadores se queixaram das futilidades em coisas que hoje temos como substanciais. O preocupante já não me parece tanto a futilidade, mas a falta de estrutura e a banalização da utilidade. É uma espécie de gentrificação das causas.
Que primeiro amor é esse a que o “Aeromoço” deve voltar?
É uma citação que, basicamente, descreve a intensidade e o ânimo dum amor fresco. O primeiro amor é quando desaparecemos para que aquilo que amamos apareça mais, em nosso lugar.
“Ei-lo” pode ser interpretado como um hino a Jesus e ao seu legado. Será Jesus a figura maior da história humana, um Beatle que espalhou o amor através da palavra?
“Ei-lo” é a minha versão do Ecce Homo, um motivo famoso da arte sacra. É um tema sobejamente representado na pintura, que é uma arte silenciosa, mas nem tanto na música. Acho que um silêncio retratado numa arte sonora pode ser (novamente) um daqueles contra-sensos enriquecedores. Enriquecedora da canção, claro, que a história original é insuperável. Se aceitar a comparação em que Jesus foi um Beatle que espalhou o amor através da palavra, também direi que foi um Marcel Marceau que espalhou amor através do silêncio. Isso e muito mais. Tudo mais.
Este tema – “Ei-lo” – é claramente uma prova de fogo à fé, que surge recompensada quando Selma entra para cantar um hino. Ainda assim devolvo-te a pergunta que levantas de início: mas como imitar alguém que se calou?
Não dá para imitar, e por isso é que tem de se imitar. A perfeição dos modelos não deve deter-nos da imitação, deve intensificar-nos o esforço e a missão.
Qual é o teu maior “Cabo do Medo”?
Tenho um certo prazer em não saber responder a esta pergunta, porque assim posso concluir que “o desconhecido” é uma resposta aceitável.
Por muito bom espírito de samaritano que nos assista, será difícil passar por boa-rês a toda a hora. Os teus vícios são impeditivos de te fazer entrar no céu ou tens um tapete capaz de os esconder a todos?
Acredito tão pouco que os vícios barrem o céu como acredito pouco que boas virtudes lá garantam entrada. A minha ideia de Fé tem muito pouco que ver com a perspectiva duma recompensa, mas muito mais com a da responsabilidade e integridade. Os vícios que vou escondendo não me tornam menos digno duma recompensa que vou receber, tornam-me é menos digno duma escravidão da qual já fui liberto.
A minha filha de 9 anos pediu-me para te fazer esta: que concertos tens em agenda para que ela possa finalmente tirar uma fotografia contigo e pedir-te para assinares as fotografias e os discos que lá estão em casa?
A filha de 9 anos está, muito bem, a expor o meu uso displicente das redes sociais. Mas prometo que vou melhorar a publicitação da agenda na minha página de artista no facebook. Como o meu manager também gere essa página, e é muito mais cioso e ciente que eu, decerto melhorarei. Essa fotografia tem de acontecer! Exijo!
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