“Mulher de Porto Pim” (Dom Quixote, 2016 – reedição), de Antonio Tabucchi, livro da década de 80 revisitado agora numa bonita edição da Dom Quixote, é uma ode aos Açores, como já outros o apelidaram, um relato onírico e sensível que desperta os sentidos, tanto de quem já lá esteve ou viveu como de quem quer ficar a conhecê-los.
Tabucchi diz-nos logo nas primeiras linhas que este pequeno livro de histórias não conseguirá ser um dos honestos livros de viagem que ele mesmo aprecia, “género que pressupõe tempestividade de escrita ou uma memória impermeável à imaginação que a memória produz“, mas antes um compêndio de ilusões.
Iludido, o leitor entra livro adentro, de peito aberto como se desejasse absorver as cores, os cheiros, a brisa do mar e toda a majestosa e imponente Natureza que impera nos Açores; mesmo que, entre abismos, a biografia e a geografia das várias ilhas alerte o leitor para os perigos e os condicionalismos de tão bruta Natureza. Existe também toda uma vida imaginária e metafórica, que se cruza com a história dos homens e cria como que um triângulo amoroso, que tanto atrai como afasta.
“Os Açores estão desertos, não viu? Sim, claro, já dei por isso, digo, é uma pena. Porquê?, pergunta ele.
É uma pergunta embaraçosa. Porque gosto dos Açores, respondo com pouca lógica. Então gostará mais deles desertos, abjecta.”
Entre musas e poetas, sonhos e naufrágios, vagueamos entre costumes das várias ilhas e tentamos, aqui e ali, vislumbrar as baleias que unem as lonjuras e as vidas, tanto dos nativos como dos imigrantes que tantos fragmentos das histórias dos Açores povoam. Temos a sensação de certas passagens nos serem legadas quase em sussurro, revelando histórias e evocando outros tempos, já outras quase nos parecem gritadas como se nos quisessem empurrar para a viagem. É um livro cheio de metáforas e até de alguma alucinação, talvez um pouco como o próprio Tabucchi fala de Antero que, sofrendo de infinito, acreditava no Nada como a perfeição.
“Não sei porque faço, ofereço-a àquela mulher do pescoço alto e à força que um rosto tem de vir à tona noutro, o que talvez me tenha tocado numa corda sensível. E a ti, italiano, que vens aqui todas as noites e se vê que és ávido de histórias verdadeiras para as passares ao papel, ofereço-te esta história que acabaste de ouvir.”
Assim, entre a realidade visitável e palpável, o livro avança com histórias de outros, os mitos e a “mulher de Porto Pim” – e até a personificação da baleia, que de forma irónica promove um desfecho introspectivo.
“Sempre tão atarefados, e com longas barbatanas que agitam com frequência. E como são pouco redondos, sem a majestosidade das formas acabadas e suficientes, mas com uma pequena cabeça móvel onde parece encontrar-se toda a sua estranha vida. Chegam deslizando sobre o mar mas não nadam (…) Permanecem longo tempo em silêncio, mas depois entre eles gritam com fúria repentina (…). E como deve ser penoso o seu amar-se (…)
Não gostam da água e têm medo dela, e não se percebe porque a frequentam. Também eles andam em bandos mas não levam fêmeas (…) Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a Lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.“
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