Imaginem um indivíduo que está presente em momentos-chave da História e que, ainda assim, é alheio a idolatria das massas, do souvenir para turista ou sequer de uma nota de rodapé nos programas de ensino. Este vulto irreconhecível (recusava-se a ser fotografado), de nome Acácio Nobre, andou pelas margens de eventos escolhidos a dedo pela Academia para perdurarem na memória colectiva, uma personalidade com um percurso tão romanesco que o mero arquivar de documentos do seu espólio inédito não é suficiente.
Trata-se de um livro organizado, ou melhor, orquestrado por Patrícia Portela, a responsável por impedir que Nobre caia de vez no esquecimento. O percurso de vida algo difuso e dado ao mito não fica resolvido, mas “A Coleção Privada de Acácio Nobre” (Caminho, 2016) oferece-nos, quer na vertente do activismo pedagógico (para a renovação do ensino das artes e o fomento à criatividade nas crianças), quer nas passagens mais intimistas (frases marcantes e vanguardistas, incursões filosóficas e até devaneios do mais comum dos mortais), um conjunto de documentos de onde se retiram micro-narrativas, em parte potenciadas pelo aproveitar do testemunho oral – pautado por profanidades involuntárias do síndroma de Tourette – de Alva, em tempos companheira de Nobre. Com isto, há uma busca pela resolução, ao jeito do propósito dos puzzles geométricos que Acácio desenhara como parte da sua vida profissional.
A autora do “resgate”, a partir do achado enigmático do espólio de Nobre na posse dos seus avós, recorre a princípios estéticos do seu trabalho sólido na criação para artes performativas (neste âmbito, explorou as possibilidades criativas da descoberta em questão, através de uma performance-concerto), e não evita o protesto à boa maneira militante, que se traduz numa perspectiva singular sobre o processo arquivístico e o trabalho de investigação – onde muitos veriam tédio, Portela vê arte e intervenção. Com o protagonismo que assume através dos comentários tecidos nas notas e na cronologia final, a certa altura, Acácio Nobre já não é figura histórica, antes um personagem de Patrícia Portela, que toma corpo sem alguma vez ser remetido a qualquer tipo de dispositivo narrativo.
Aquilo que fica por dizer, aliado às passagens que nos arrebatam e o perfil do homem que se traça, só permite uma construção interior que, em circunstâncias normais, é reservada à ficção que se assuma em exclusivo como tal. Mas aqui, a espaços brancos (é um livro que respira muito), toca nos mesmos pontos de estímulo. Há dois achados: o de Patrícia Portela e o do leitor.
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