“Eu só sei crescer.” Quem o diz é Samuel Úria em “É preciso Que Eu Diminua”, segunda faixa do seu novo disco “Carga de Ombro”. De facto, a carreira do músico de Tondela tem vindo sempre a subir, desde o seu primeiro álbum lançado em nome próprio: “O Caminho Ferroviário Estreito”, de 2003. Discretamente, Samuel Úria tornou-se um dos nossos melhores escritores de canções.
Depois do bem-sucedido terceiro álbum “O Grande Medo do Pequeno Mundo”, de 2013, aguardava-se com natural expectativa este novo trabalho. Expectativa também para assistir ao primeiro concerto de apresentação do disco, no São Luiz Teatro Municipal.
Com os seus camarotes forrados a talha dourada, a sala principal do São Luiz é uma das mais belas de Lisboa. Na sexta-feira esgotou os seus 730 lugares para receber Samuel Úria. O imponente lustre apaga-se e o concerto começa com “Dou-me Corda”, primeiro avanço do disco. Em palco, para além dos músicos, há um coro: 8 silhuetas recortadas contra um fundo laranja. A cor e a sonoridade blues transportam-nos para o coração da América, a contemplar um pôr-do-sol no Mississipi.
Segue-se “Espalha brasas”, cintilante momento pop, com o coro a sublinhar as linhas melódicas vigorosas da canção e, depois, “Aeromoço”, música dedicada a Bruno Morgado, amigo e colega dos primórdios da editora FlorCaveira. Samuel Úria mostra que não é apenas um talentoso compositor, sacando com a voz uma interpretação poderosa.
De seguida canta, de kimono colorido, no centro do palco. Um foco de luz quebra-se nos seus ombros. Acima do músico há quadros com desenhos de inspiração BD, representando o artista e não só – um deles mostra uma mão no mar, levantando uma cassete acima das águas, qual Camões salvando os Lusíadas sonoros.
O músico tira o kimono e, com uma simples t-shirt preta, interpreta uma muito aplaudida versão acústica de “Eu nem lhe tocava” – dedicada aos que afirmam “eu curto é o primeiro álbum do Samuel”, diz com ironia. Este momento sereno dá lugar a uma ritmada explosão de energia chamada “Repressão”, do novo “Carga de Ombro”. Ouvem-se cowbells e teclados de jogo de computador, numa energética desbunda.
O atmosférico tema-título “Carga de Ombro” foi um dos pontos altos da noite. Com a slide guitar em fundo, a voz sem artifícios de Samuel e os teclados aveludados à M83, a música tem tudo para ser um fenómeno – ao vivo tem ainda a presença do coro a abrilhantar o som. Os 8 jovens cantores (devidamente apresentados por Samuel) foram uma constante mais-valia, dando às músicas uma textura e uma melodia que encaixaram como uma luva nas composições.
Apesar de serem bem visíveis as influências de artistas americanos como Tom Waits, Johnny Cash ou Springsteen, a música de Samuel Úria tem uma inegável portugalidade – as letras são inundadas de paradoxos, trocadilhos e deliciosos jogos de palavras, onde cabem expressões como “karma para canhão” e “já cá está quem não falou”.
Outro ponto maior foi “Lenço Enxuto”, do anterior “O Grande Medo…”, tocado numa altura em que o público já estava rendido ao cantor. A entrega de Samuel era grande, e a já de si fantástica composição ganhou uma expressão e cor singulares.
Mas o melhor momento estava ainda para vir. Espirituoso e sempre muito dialogante com o público, Samuel pede-nos para ouvirmos não só as vozes mas, também, as almas dos músicos, no tema “Ei-lo” – do novo disco. É uma espécie de espiritual rock – faz lembrar “Tender”, dos Blur. Com a sua forte inspiração no Gospel, transporta-nos para uma musical Igreja Sulista.
Uma surpresa estava ainda reservada: a meio da música entra em palco a cantora Selma Uamusse, e sua voz potente provocou um reação epidérmica, ao nível dos cabelinhos da nuca, em toda a plateia. Nada menos que brilhante, a sua participação elevou a noite a grandes alturas.
Samuel não esqueceu também os clássicos mais antigos, como “Barbarella e Barba Rala”, “Não Arrastes o Meu Caixão”, “O Diabo” ou “Império”. O falsete diabólico de “Teimoso” começou com uma passagem por “Kiss”, de Prince, em jeito de homenagem ao músico desaparecido esta semana. Já no encore, ecoou na sala a belíssima “Lamentação”, com todos os músicos em palco a fazer os coros.
O concerto termina com Samuel, a um canto do palco, só com a sua guitarra acústica, a tocar novamente o tema “Carga de Ombro”. Os músicos e o coro juntam-se a ele e partem numa peregrinação pelo meio do público, com toda a gente a bater palmas e a sorrir. Como um trovador ambulante, o músico sai a tocar pela porta de saída da sala, num cortejo em que todos responderam ao seu apelo: “Põe o teu ombro junto ao meu, carga de ombro é legal.”
Ver Galeria Fotográfica (Fotos de Luís Andrade)
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