Não será heresia dizer que a música portuguesa, no que diz respeito a cantautores, vive um período dourado. Nomes como Coelho Radioactivo ou Luís Severo – apenas para citar dois -brindaram-nos há não muito tempo com senhoras rodelas e, quanto ao grande Samuel Úria, regressa já em Abril com um novo longa-duração. Há, porém, um disco recente que aterrou na redacção do Deus Me Livro com a força de um meteorito incandescente, deixando muitos corações entregues a essa coisa linda do amor.
Lançado pela Sping Toast Records, “Vida Salgada” é o disco de estreia de Filipe Sambado. Nove temas atravessados pela ideia de perda, entre o desamor e a esperança, numa pop que tem tudo lá dentro, desde a música de baile ao psicadelismo. E letras muito bem urdidas. Segue-se uma viagem salgada às faixas deste disco que se dança, ainda que não seja Samba. É Sambado.
Para ouvir no próximo domingo, dia 3 de Abril, no espaço Rua das Gaivotas, 6. Para mais informações sobre o concerto de apresentação do disco sigam por aqui.
A Moda
Uma música para crianças que, de repente, arranca para um desfile de moda existencial atravessado pela solidão. Há uma guitarra que arranha devagar, um sintetizador brincalhão, coros que chegam de toda a parte vindos de atiradores furtivos e versos como estes:
Não aliso pregas nem rugas da roupa
Coloca-me as vestes na pele que sufoca
Veste-me a dourado o azul da emoção
Quero ir bonito manter a ilusão
Vida Salgada
O amor transformado em especiarias e em temperos, regado com um bom dão e exorcizado com erva-mate superior, numa pop que vem do espaço e exige a vida por inteiro:
Antes queria não viver
Do que andar a viver mal
Dá-me beijos sem saber
Dá-me vida com mais sal
Tou confuso
Mais uma música que vive de subidas e descidas. Começamos com um bombo irrepreensível que marca um passo quase militar, a que se junta um teclado que parece um riso distante. Há, depois, um baixo saltitão que chega antes de um disparo verdadeiramente pop que aponta ao coração da individualidade, seja celibatária ou bem acompanhada, testada entre os níveis de açúcar e os índices de sal. Tudo regado com uma boa dose de psicadelismo.
Ainda se acusa tanto essa pressão de ser igual
Olha que eu gosto mais de açúcar e tu gostas mais de sal
Nem tudo o que pensas hoje tens de pensar depois
Ontem éramos só um hoje já somos os dois
Roda a garrafa
Curioso tema que principia nas águas do rock psicadélico, com uma guitarra deixada à solta, até que o refrão chega e transforma tudo num baile onde já todos beberam mais que a sua conta. E que, aproveitando um momento de acalmia, conta-nos que nem os apetites do vento são suficientes para acabar com a corrente inesgotável do amor.
Mas se o vento muda
(Se o vento mudar)
Mas se o vento muda
(Se o vento mudar)
Mas se o vento muda
(Se o vento mudar)
Saúda-se à vontade
E a ter com quem partilhar
Séria candidata a balada do ano, é uma autêntica pérola no que à arte de escrever canções diz respeito. Está tudo aqui: a luta pela individualidade, o medo do mundo, a vontade de mudança, a esperança eterna. E versos deste calibre:
Já lavrei terra no campo
Já lancei redes ao mar
Agora vim p’ra cidade
Ensiná-la a amar
Encaixar peças contrárias
Em doses mais arbitrárias
À noite há menos juízo
Dar mais sem querer receber
Não ter medo de perder
O que não é preciso
É que a estrada parada
Parece mais agitada
Do que um dia de feira
Não vim praqui só por estar
Foi por me apaixonar
A viver d’outra maneira
Nó do Peito
Uma guitarra a fazer lembrar os Real Estate faz cócegas no peito, até que este se vê tomado pela nostalgia como que antevendo um fim que está demasiado próximo. Um tema cantado e embalado a duas vozes que, no instante derradeiro, ainda arranja forças para lançar um desafio – ou, talvez, uma maldição de todo o tamanho:
E se eu nadasse até não conseguir voltar
Ias passar a tua vida toda a ver o mar
Telhados de Vidro
As grandes e as pequenas amizades são feitas de asneiras, umas mais irreparáveis que outras, e esta falsa balada, que a certa altura nos faz dançar como num tema dos Doors, faz da amizade um terreno de flores artificiais:
Foi na brincadeira fizemos asneira não dá pra negar
Iguais como dantes as noites errantes dão p’ra tropeçar
Não há flores p’ra colher não há flores p’ra pisar
Não há flores p’ra colher não hã flores p’ra cheirar
Subo a montanha
Esta será uma das aproximações maiores de um tema popular a um banho com sais de mescalina. Se tudo começa com o embalo popular, de repente temos de um lado um batuque completamente chanfrado e, do outro, um teclado hipnótico. Isto para não falar das vozes que a certa altura despontam como assombrações. E onde se canta o amor e o desejo à moda de Lucy in the Sky with Diamonds:
Subo a montanha porque te vejo nas nuvens
O algodão é doce porque é d’onde tu vens
Quando sussurras com essa tua voz rouca
Ai o desejo que tu me deixas na boca
Já não Vou sair daqui
Um disco desta monta não podia acabar sem um épico, uma balada embrulhada com uma fita emprestada pelos MGMT e, novamente, a boleia dos Real Estate, que desta vez emprestaram a tesoura. Canta-se na primeira pessoa o caminho que já ficou para trás, a impossibilidade do regresso e, sorte a nossa, o desejo de um futuro. Que isto nunca acabe.
Ficou pa trás a praxe destas anos
Hão de haver histórias por contar
Se houver xitação p’ra mais mil planos
Isto nunca há de acabar
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