Certas noites, feitas de expectativa por algum sono carregado de sonhos, começam assim, como este concerto. Entre a espera pela ocupação de um palco caloroso e os instrumentos ansiosos, soam as primeiras notas da harpa de Angélica e, assim, sonha acordada uma audiência muda, que mergulha na serenidade como o bater do coração se dilata pelo corpo.
Não tardaria a dar a cara o sonhador de “Um Piano nas Barricadas” que, sozinho nesse piano, com o seu estilo irregular de tocar e tímido de ser, se derramou nas teclas como quem está, de facto, sozinho com a música. Mas a solidão de Tiago Sousa não tardou a povoar-se. O som envolvente do shruti tribal de Baltazar, que logo virou percussão e guizos, e o solene feito penetrante sopro de Ricardo vieram, assim, fundir os vários sons que aqueceram e se ergueram do palco da Galeria Zé dos Bois.
Ao fim de cinco músicas estava mais que oficializada a chegada de um novo álbum, feito da sensibilidade dos quatro músicos que partilharam inspiração e a amizade para os ouvidos mesmerizados do público que acabou sendo mais que as cadeiras.
Este novo registo de Tiago passara da sua mente às suas mãos, dos seus dedos às teclas e do ar ao imaginário de cada um. O vector terá sido a indefinição bela, delicada e altiva desta sua linguagem que, rapidamente, embrulhou a sala. Mas, como que a provar que indefinido é o tempo, levemente seguimos na brisa das memórias de Tiago até 2014, onde habita “Confucius and The Madman”. Como um barco que navega com pouco vento mas inevitavelmente confronta as tempestuosas decisões do mar, chegamos à outra margem, de novo ao presente. Lá, poderia achar-se que pequenas aranhas se apoderaram dos instrumentos, num frenesim controlado por onde uma harpa graciosamente escapa, a preconizar a bonança vizinha.
Perto do fim, Tiago retorna acompanhado apenas por Debussy. Uma vez mais, as suas mãos se deleitam tecla a tecla, todo o talento indiscutível se revela como metade técnica metade âmago e, por não ser possível parar o tempo, o final então chega ao princípio na primeira nota de “Samsara”.
A despedida deixou saudades mas, nas paredes da sala e na alma de quem teve o prazer de ouvir, ficou o sentimento de um concerto que só pecou por terminar.
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