Os livros chegam-nos do Planeta Tangerina numa nave espacial, a toda a velocidade, ou então num balão de ar quente, pousando-nos nas mãos – ou no olhar – numa aterragem suave. Ou então não é nada disto. Mas a verdade é que os livros partem do Planeta Tangerina e ganham vida própria, noutros planetas, que são as casas, os olhos, as mãos dos leitores, grandes e pequenos, sonhadores e destemidos, racionais e tímidos, entre leitores compulsivos e curiosos apanhados quase desprevenidos, entre o princípio de uma ideia e o fim de uma página, entre o fechar de um livro e o abrir de outro, de outro e de outro.
O Deus Me Livro viajou até ao Planeta Tangerina e esteve à conversa com duas das autoras do projeto, Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, para quem o Planeta Tangerina é «experiência ou experimentação», num percurso diário para fazer diferente, para fazer bem, para fazer melhor.
Os álbuns ilustrados e o tudo (im)possível
Do Planeta Tangerina saem muitos álbuns ilustrados, porque com eles tudo é possível. Quase tudo. Isabel Minhós Martins explica onde começa e acaba esse tudo: «Os álbuns são como uma esponja que pode absorver muito tipo de texto e de imagens. Nesse sentido podemos fazer um álbum com fotografias ou só com desenhos que usem uma linha preta, ou outros que recorram a muitas técnicas diferentes. Nesse sentido são infinitos.» Madalena Matoso entende que «o tudo é possível tem a ver com a nossa liberdade em trabalhar aquele suporte que é o livro. Ou seja, não temos que ter uma história, mas também podemos ter: é um tudo porque, nos livros, é sempre tudo possível.»
O Planeta Tangerina faz-se de papel, tinta e cartão, de materiais palpáveis que nem por isso deixam de ser interactivos. Isabel Minhós Martins diz que se pode fazer tudo porque «há muitos ingredientes mas há também limitações, e desde que surgiram os livros electrónicos e as aplicações (que nem sei se são livros) há ainda mais limitações.» Contudo, o segredo para ultrapassar barreiras está na criatividade. A autora explica que «a coleção Cantos Redondos nasceu para nos desafiarmos a nós próprios e tentarmos, através do livro, conseguir fazer coisas que são quase aquela família das coisas mais interactivas. Tentar ver o livro como um objeto e de que forma o podemos explorar e torná-lo ainda mais infinito.»
É com alguma ironia a revestir a modéstia que Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso reagem à pergunta “Quem é que pega primeiro num livro da Planeta Tangerina: uma criança ou um adulto?”: «Depende… Se ele estiver numa prateleira ao lado dos livros técnicos é a criança.» Um pouco mais a sério falam de concorrência e de impulsividade: «Nós sabemos que a concorrência é muito feroz e que os miúdos já vêm com muitos pré-conceitos, com muitas referências que trazem de casa, de ver televisão – sobretudo -, dos jogos de computador e do cinema. Quando chegam a uma livraria e um livro nosso está no meio de outras coisas com personagens que eles já conhecem não tenho a menor dúvida de que, a primeira coisa que fazem, é atirarem-se ao que já conhecem. Mas, se calhar, nós adultos também somos um bocado assim», conta Isabel Minhós Martins.
Para duas das criadoras do catálogo Planeta Tangerina, os livros chegam a casa por via dos pais, mas muitas vezes através da escola, dos professores e dos amigos. Apesar de concordarem que nem todos os professores estão preparados para trabalhar os livros que editam, Isabel explica como ultrapassaram tal fragilidade, disponibilizando no site da editora materiais de apoio e dicas de exploração: «Temos noção de que às vezes saem daqui alguns objetos um bocadinho estranhos…» Objetos “estranhos” que, afinal, se entranham. «A sensação que tenho é que as pessoas também gostam dessa estranheza. Algumas estão receptivas a essa estranheza e a deixar que a estranheza se transforme noutra coisa qualquer», desabafa, enquanto Madalena Matoso recorda «uma história que uma avó contou, em que os nossos livros eram guardados numa prateleira diferente lá de casa e o neto adorava os livros porque tinham um carácter diferente, como se fossem coisas da avó.»
Tantos livros e tão pouca escolha
Num tempo em que se edita tanto, a editora assume a sua identidade sem deixar de atribuir valor a quem consegue realizar um sonho: «Acho que, por um lado, se as pessoas quiserem escrever um livro e fazerem uma festa para o lançar e apresentar aos amigos, isso é positivo. Se as realiza e faz feliz é sempre positivo. Agora há uma coisa que tem a ver com o espaço nas livrarias e, por enquanto, os fenómenos de auto-edição ou edição paga ainda não são uma concorrência no espaço da livraria, porque normalmente têm tiragens pequenas que o próprio autor vende aos amigos e, em alguns casos, essas editoras têmmesmo um espaço próprio onde os vendem. Então, esses livros não entram nas livrarias, no circuito de distribuição. Porque se isso começasse a acontecer, acho que se poderia tornar um problema. Não tenho muita confiança nos mercados, prefiro confiar na escolha que depois as pessoas fazem», opina Isabel. A distinção tem de ser feita por quem compra, por quem aconselha e por quem lê: «O que é importante é não deixarmos morrer a crítica, morrer o espaço de divulgação dos livros ou o jornalismo especializado, isso é que é um perigo. Ou, então, haver pessoas que não percebem muito do assunto e que começam a tratá-lo na comunicação social sem saber bem diferenciar as coisas. Acho isso muito mais perigoso do que uma avozinha fazer um livro de poemas. Devemos preocupar-nos mais com isso», alerta Isabel.
Num país em que se diz que se lê pouco a escrita é o sonho de tantos, algo que Madalena vê com naturalidade: «Muitas vezes as pessoas, quando criam alguma coisa – e às vezes até são pessoas que já depois de deixarem de trabalhar se dedicam a fazer uma coisa que sempre gostaram -, ficam contentes com o resultado e querem mostrar aos outros. Acho isso muito natural.» Na verdade, hoje em dia são muitas as ferramentas que facilitam transformar um projecto de vida num livro acabado: «Hoje em dia é muito mais barato editar do que há 20 ou 30 anos atrás, em que uma pessoa tinha de ter um orçamento por trás muito maior; e isso também nos facilitou a nós, Planeta Tangerina, o facto de começarmos a editar livros. Essa facilidade também pode revelar-se uma coisa boa», declara Madalena. Isabel entende que «às vezes as pessoas confundem um bocado isto de tornarmos visível aquilo que fazemos, porque escrevemos um blogue ou fazemos uma edição digital que tem a forma de um livro editado, com ter uma obra com qualidade. E o que eu sinto é que as pessoas têm a ilusão de que aquilo está feito, só por estar com um ar mais profissional. Não distinguem porque não lêem, porque se lessem muito iam ser mais exigentes na avaliação que fazem do seu próprio trabalho. Mas isso…é uma pescadinha de rabo na boca.»
Texto e imagem num só
Os álbuns do Planeta Tangerina dizem quase tudo com muito pouco, uma linguagem que para alguns pode ser vista como simplista. «Duas linhas de texto e já está? Se é tão fácil…então façam», desafia Isabel, autora de muitos dos textos que editam, explicando ainda: «É um bocado como tudo. Também há pessoas que olham para um quadro com formas abstratas e dizem: isto também eu fazia. Ou ouvem um jazz improvisado e dizem: isto também eu tocava. Os nossos livros não são a mesma coisa, mas ver muitas coisas é sempre bom, para perceber o que é que estes livros têm de diferente de outros. Pode ser um primeiro passo.»
Um primeiro passo que poderá levar muitos leitores a descobrir a imagem de marca da editora pelas palavras de Isabel: «Imagem de marca? Muito a força das ilustrações e a parte gráfica, a relação entre o texto e as imagens. É impossível separar o texto das ilustrações, uma coisa não vive sem a outra, e acho que isso pode ser uma marca. Não somos a única editora a fazer livros assim, mas acho que isso pode ser olhado como uma marca nossa.»
Uma marca que buscam não só na produção própria mas, também, na compra de direitos: «Há muitas coisas no mercado externo de que gostamos, e ainda há muita coisa boa que não está editada por cá. O que aconteceu nestes anos foi o aumento do nosso entusiasmo e da vontade de fazer livros, por isso é algo que pode acontecer em simultâneo: continuarmos a fazer livros originais e a ter alguns editados a partir de direitos comprados. Acho isso entusiasmante! Temos uma coleção juvenil e vamos comprar em breve os direitos de uma novela gráfica. Quando descobri esse livro, que achei que se encaixava mesmo ali, foi uma coisa fantástica. É outro tipo de entusiasmo, diferente de criar», conta a autora.
Os projectos que nascem dentro da editora têm, na sua maioria, um autor e um ilustrador distintos, uma partilha de talentos que, para a ilustradora Madalena Matoso, pode ser uma vantagem: «Quando se concentra na mesma pessoa texto e imagem existe a vantagem de haver uma sintonia quase de nascença. Muitas vezes, texto e imagem nascem quase ao mesmo tempo, ou vão evoluindo paralelamente. Por outro lado, é claro que um livro feito por duas pessoas, duas cabeças, traz coisas boas, há ali duas pessoas a colaborar no mesmo projeto».
Cada livro é um ser autónomo e os temas para cada um deles não são procurados no calendário: «Tentamos não fazer livros muito repetidos. Se calhar, se já fizemos um sobre a morte não vamos fazer outro, a não ser que seja uma ideia ou uma abordagem que não tenha nada a ver. Mas não é uma coisa premeditada para ir ao encontro de um tema. Até nos irrita um bocado no ano internacional de “não sei quê” fazer-se um livro sobre isso, ou é o ano do centenário da morte de “não sei de quem” e faz-se um livro sobre essa personalidade. Não tenho nada contra, mas não é uma coisa que nos atraia enquanto editora de livros», diz Isabel.
Isto não invalida que os projectos não comuniquem algo, como explica: «Uma fábula ou os Contos de Grimm têm uma lição, pode ser mais directa ou mais indirecta. Nós sentimos que já existiam muitos livros assim e nunca tivemos tendência para fazer histórias desse género. O que não quer dizer que os livros não tenham uma mensagem, ou até uma moral, implícita na maneira como se fala de uma coisa, na forma como deixam passar uma mensagem.»
Distinguida em 2013 na Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha como a melhor editora europeia para a infância, autora e ilustradora falam do prémio como um reconhecimento por parte dos seus pares: «Há editoras incríveis e para as quais nós olhámos sempre de baixo para cima», diz Madalena.
Para ambas o mais importante foi ter ficado nas cinco melhores editoras, depois «tem muito a ver com a simpatia pelo projecto, por sermos uma editora pequena, com uma equipa pequena, por termos um contacto mais próximo com os outros editores. Isso também pode ter ajudado, mas essa primeira escolha foi mesmo inesperada», desabafa Isabel.
Depois do prémio, muda alguma coisa? Isabel Minhós Martins responde: «No nosso dia-a-dia, no nosso trabalho, não. Pode mudar mais a maneira como os outros reparam em nós ou olham para nós, ou nunca repararam e começam agora a reparar. Não conseguimos muito bem avaliar, por exemplo, em termos de vendas de direitos, qual terá sido o impacto do prémio, pois já vendíamos direitos antes do prémio e continuamos a vender. Temos vendido bem, sim, mas não sei se terá a ver com isso, porque mesmo que tivéssemos o prémio e não tivéssemos livros que os outros editores gostassem – ou em que quisessem apostar -, também não teria valido de nada.»
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