“É então isto para crianças?” Foi esta a pergunta que, durante dois dias – 9 e 10 de Fevereiro -, andou na cabeça de espectadores e oradores de um colóquio que pretendia revelar o que está por detrás das criações para a infância e a juventude.
Num encontro comissariado por Inês Fonseca Santos, que reuniu escritores, compositores, ilustradores, investigadores ou programadores – cada um deles convidado a partilhar um objecto marcante das suas vidas -, as super-estrelas foram sem dúvida Serge Bloch e Davide Cali que, entre si, já criaram dois objectos singulares que, curiosamente, tratam de temas considerados difíceis para crianças: a morte – mas também todo o ciclo de vida e a passagem de testemunho -, em “Eu espero…” – edição portuguesa pela bruáa – e a guerra, no livro “O Inimigo” – tradução livre, já que este último não conhece ainda edição portuguesa.
Dia 1
Na conferência de abertura, Rui Vieira Nery – Director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas – deu o mote para dois dias de conversa. Ao falarmos de literatura infanto-juvenil, devemos falar de grande arte e de grande literatura, que tem a responsabilidade maior de incutir nos mais novos as primeiras impressões estéticas e valores, mostrando-lhes, também, a relação com o belo e o caminho para a prossecução da felicidade. Nery falou igualmente da necessidade – e do dever – que o criador tem em respeitar o seu interlocutor, dando-lhe uma capacidade livre de escolha.
Carla Maia de Almeida, moderadora da conferência intitulada “É então isto um livro?”, sugeriu um título paralelo e/oualternativo: será isto uma criança? Antes de abrir a conversa aos participantes na mesa, a jornalista falou de habitarmos numa época de mentiras e ilusões, onde as crianças surgem quase como sobreviventes. Sobre o processo de criação para a infância, Carla deu o exemplo de Enyd Blyton, uma autora que, apesar de ter escrito sofregamente para crianças, não gostava aparentemente muito delas – pelo menos dos filhos próprios. Para a também autora de livros infanto-juvenis – refira-se apenas a título de exemplo a pérola “Irmão Lobo”, uma edição da Planeta Tangerina -, «os melhores livros para crianças são os que revelam uma autenticidade autoral e uma vontade de comunicar», ligando-nos ao que de mais verdadeiro temos para oferecer aos outros: o universo interior.
Catarina Sobral, ilustradora e autora de livros para crianças, indicou os ingredientes mágicos que utiliza nas suas histórias e que considera fundamentais nos livros para os mais novos: humor, jogos de linguagem, uma mistura de páginas simples e duplas e uma relação saudável entre texto e imagem, respeitando as alturas em que se deve deixar o texto falar sem interferência visual ou, em alternativa, a de seguir a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras. Uma coisa ficou clara: Catarina pensa e trabalha nos seus livros ao milímetro de papel (e ainda bem).
João Fazenda, que trouxe para partilhar o clássico “O roubo do Marsupilami” – da saga Spirou -, falou do processo de descoberta por acidente que viveu – e que será também aconselhável aos mais novos em alternativa à moldagem parental fundamentalista -, lamentando que, nestes tempos de edições quase sobrepostas para os mais novos se tenha perdido, em parte, o imaginário clássico das aventuras, dando como exemplo o cinéfilo “Fantasia” e os eternos mosqueteiros. Fazenda, ilustrador – entre outras ocupações – de uma versatilidade incrível, referiu-se ao acto de desenhar como um retorno à infância, à suprema idade da brincadeira, referindo o perigo de, ao criarmos, ficarmos reféns de uma ideia ao distinguirmos logo à nascença se o estamos a fazer para crianças ou adultos, não esquecendo de referir o próprio marketing editorial como um mecanismo censor em potência.
Francisco Vaz da Silva, um dos mais entusiasmantes teóricos do mundo dos contos maravilhosos, levou os participantes ao rubro revelando o que se esconde por detrás de clássicos como “Capuchinho Vermelho”, “Rapunzel” ou “Branca de Neve”, não deixando de falar dos Grimm com uma dupla que, além de oferecer uma violência impiedosa, escondia uma moral feita de bons costumes. Falou também da ideia inicial da escrita como nascida do encantamento, do inconsciente, que só depois é racionalizada – ainda que existam muitas técnicas – e substâncias – para diminuir o pensamento consciente.
Davide Cali, autor entre muitos outros títulos do recente “Não fiz os trabalhos de casa porque…” (entrevistado recentemente pelo Deus Me Livro) – edição Orfeu Negro -, começou por partilhar o tema – e o videoclip – “1979”, dos Smashing Pumpkins, afirmando que escreve porque tem constantemente a música a passar-lhe pelos ouvidos, resultando isso em histórias e imagens. O autor tocou guitarra durante muitos anos, e poderia bem ter seguido a carreira musical se não tivesse ingressado na BD. Cali afirmou que escreve essencialmente para si próprio, e que as histórias estão longe de terminar da forma como os seus autores as deixam no papel: as crianças levantam questões, observam todos os pormenores e, muitas vezes, inventam novas histórias para lá da palavra fim que surge na última página.
A parte da tarde foi mote ao tema “É então isto um filme?”, moderado com distinção por Filipa Leal. Através de um depoimento filmado, José Miguel Ribeiro deixou o seu contributo: «algo terá de mudar, e quem melhor que as crianças para o fazer?»
Afonso Cruz elogiou a “literatura com bonecos”, muitas vezes o primeiro contacto dos mais novos com os mundos da literatura e da ilustração. Referindo que só pensa em crianças quando as tem de ir buscar à escola, o escritor/ilustrador/músico/inventor de cerveja referiu-se à liberdade de escolha e à necessidade das boas escolhas, confessando que, na maior parte das vezes, é o editor que aponta o universo literário a que está dirigido depois de terminar o livro.
Filipe Galrito referiu-se aos flipbooks como os livros da sexta geração, reivindicando a urgência de recuperarmos a ideia – e também a prática – de “termos tempo” para poder fazer e pensar as coisas, algo que, nos tempos modernos, vai sendo cada vez mais complicado de conseguir.
Regina Pessoa agradeceu emocionada à Gulbenkian pelo projecto da Biblioteca Itinerante, que ainda hoje leva livros aos sítios mais recônditos do país. Realizadora de diversos filmes para o público mais jovem, Regina disse que, apesar de fazer filmes sem pensar necessariamente nas crianças, estes nascem e partem das suas próprias recordações de infância.
João Paulo Cotrim, que falou da BD como o primeiro contacto com o mundo da ficção e do eterno receio humano das imagens, rejeitou a autópsia do acto de criar, falando da necessidade da permanência do enigma, tanto do acto criativo como do próprio exercício de leitura. Cotrim falou igualmente do papel mais interventivo que os pais têm hoje em dia, mostrando-se mais disponíveis para as crianças do que acontecia há trinta anos, o que torna natural a profusão de propostas artísticas para os mais novos nas mais variadas áreas.
Dia 2
Inês Menezes, muito provavelmente a voz mais sensual das ondas hertzianas nacionais – em complemento a um gosto musical de primeiríssima água -, moderou a mesa “É então isto uma canção?”, que contou com a participação de B Fachada, Manuela Azevedo, Helena Rodrigues e Suzana Ralha.
Para Suzana Ralha, o criador deve estar sempre um passo acima do nível a que a criança está prestes a chegar, referindo-se ao livro como o terreno encantatório da música e da rima. Susana referiu-se ainda às “difíceis” canções de António Pina – mais um autor promovido a génio depois de morto – e aos anos (19)70 como território muito propício às canções parvas, isto no género infantil. Falou também a ideia de que as crianças são sensíveis às verdades dos adultos, e da apropriação que os mais pequenos fazem das canções, muito para lá do puro poema – por vezes apenas querem dançar a canção, outras escutar as palavras. Para Suzana, o grande desafio da criação será o de combater a apatia que pode surgir nas crianças para lá da palavra.
B Fachada, que lançou o seu disco para meninos em pleno período tio, longe ainda de pensar que a paternidade esta para breve, referiu-se ao género infantil – e ao seu próprio processo de criação – como sendo mais formal do que propriamente moral. Defendeu que há espaço para tudo, sendo a própria canção o meio privilegiado para a criação de paradoxos, onde verdades e mentiras habitam a mesma casa. Sobre o amor, Bernardo acha que o compositor tem o papel de criar canções de dois universos distintos: o dos amores profundos e o das paixões mais leves – ou, se quisermos, as amizades no limite. No mundo ideal, toda a gente teria a sua canção, acrescentou.
Helena Correia agarrou a orelha de B Fachada para cantar um tema popular com um macaquinho lá dentro, defendendo a resposta automática que o bebé tem à música. A partir daí assistiu-se a um recital de linguagem infantil, que conseguiu arrancar exclamações ao bebé presente na sala.
Manuela Azevedo, que com os Clã editou um disco apontado ao público mais jovem, referiu-se ao atrevimento como uma das armas a usar quando se escreve para crianças, espectadores com grandes qualidades que sabem voar para outros universos a partir daquilo que se lhes oferece. Sobre a Violetta, aparentemente uma figura incontornável até nos meios culturais mais sérios, disse que a rapariga está longe de poder ser considerada uma batata frita, e que até se apresenta bastante fresca e com uma boa noção de ritmo. De acordo com Manuela, as crianças estão preparadas para ouvir alguma má música durante o seu percurso, recusando a moldagem parental absoluta sobre os filhos.
A última mesa teve como tema “É então isto um espectáculo?”, moderada por Carla Caldeira. Madalena Vitorino, uma das percussoras em Portugal no que diz respeito à programação específica para o público mais jovem, referiu-se à arte como uma ajuda para ajudar a responder a algumas das grande questões: quem somos? Para onde vamos. Susana Menezes questionou o que acontece depois do fim. Patrícia Portela defendeu a ideia de que os processos de criação serão os mesmos para todos os públicos: arriscar, não compartimentar, seduzir. Já António Jorge Gonçalves – depois de partilhar uns desenhos muito castiços da filha – aproveitou para criticar a atitude narcisística do artista, defendendo que há que estar no mesmo comprimento de onda que as crianças e ter uma total entrega para que o espectáculo chegue a bom porto. E que, para tal acontecer, a demanda terá de ser construída com elas, cabendo-lhes assumir o protagonismo, em palco ou nas cadeiras, quando chegar o momento de viragem da história.
Mais do que respostas, o colóquio “É então isto para crianças?” deu a conhecer várias das tendências e dos processos de criação de quem escreve, compõe, filma ou programa para crianças mas, também, de quem os educa e cria. Liberdade de escolha ou moldagem parental apertada? Criar com o umbigo ou a pensar em quem estará do outro lado da criação? O final ficou tão em aberto que se impõe pensar, desde já, numa sequela. Desta vez, com algumas crianças pelo meio.
Fotografias gentilmente cedidas por:
© Márcia Lessa FCG
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