Munido de contactos no meio editorial, Max Brod leva a cabo, entre 1925 e 1935, aquilo que hoje não difere de uma exaustiva campanha de relações públicas. O sucesso literário de Franz Kafka, póstumo, sagra-o como um dos maiores escritores de língua alemã, influente no sentido mais plural que se possa conceber. A versão biográfica de Kafka, fixada por Brod, fá-lo ascender ao plano mitológico. O falecido autor checo é apropriado por quem se debate sobre a sua natureza, seja esta encaminhada para um panteão de heróis, graças ao duelo literário que travou com os mais sinistros recantos da psique humana, seja por ser outro entre (todos) os homens imperfeitos, esse sim um olhar realista sobre quem não escapa à sua condição, calejada pelo erro e vontades paradoxais. Se considerarmos Franz Kafka parte de um mito criado por Max Brod, prontamente reconhecemos a assemelhação do seu nome pelo engenho capitalista – Kafka tem o estatuto de marca e, quem nunca o leu, certamente ouviu falar dele.
10 de Maio, 1933. Contra o que consideram ser uma afronta ao espírito germânico – de onde se destaca a produção literária de intelectuais judeus -, estudantes universitários celebram uma queimada de livros na praça pública. Sucumbem às chamas mais de 25000 volumes. Berlim, centro nevrálgico do festim anti-cultura que se proclamava pró-cultura, rende-se a um discurso fervoroso de Joseph Goebbels na Opernplatz, com a assistência a rondar as 40000 pessoas. O Ministro da Propaganda apela ao fim do atentado à moral germânica. A par de outros imperativos ideológicos, as repercussões sentidas nos 6 anos seguintes são por demais conhecidas pelo leitor.
A guerra que se alastra, encabeçada pelo manipulador nacional-socialismo alemão, está efervescente a 15 de Março de 1939. Desta feita, a data marca a invasão nazi da Checoslováquia. De lá, uma porção dos exilados judaicos segue para a terra prometida, Palestina, entre eles Max Brod e o conteúdo de parte da sua bagagem, nada mais que o espólio manuscrito do então falecido amigo, também em vida um intelectual judeu, Franz Kafka.
Estudante de Direito, Kafka conhece Brod a 23 de Outubro de 1902, após o segundo discursar sobre Schopenhauer na Deutsche Karl-Ferdinands-Universität (Praga). A amizade perdurará. Max Brod, ao contrário do seu amigo, é reconhecido em vida, tendo até à sua morte (em Tel Aviv, cinco dias antes da celebração do Natal cristão de 1968) publicado de forma prolífera. Por sua vez, Kafka, em vida, exceptuando o aparecimento pontual de textos seus em publicações com um público muito específico e edições menores, escreve sobretudo para si, sem grandes preocupações em ordenar os textos mais extensos ou até, em alguns casos, terminá-los. O desejo de ser publicado e aclamado por um grande público é, porém, uma hipótese que equaciona em vida.
Uma morte anunciada, aos 41 anos, reaproxima Brod semanas antes de Kafka sucumbir à tuberculose. O amigo insiste em ficar na posse dos manuscritos, para que, mesmo a título póstumo, Kafka tenha o devido reconhecimento. Se no início as “negociações” parecem inclinar para a cedência dos textos a Brod, Kafka acaba por deixar uma nota importante para um futuro debate moral acerca da conservação da sua produção literária. O seu último desejo é que, em síntese, o seu espólio seja queimado sem ser lido, desejo esse não respeitado por Brod (como é óbvio, caso contrário o leitor não estaria aqui e nunca teria ouvido falar em Kafka, nem empregaria pontualmente a expressão kafkiano/a quando se vê envolvido numa cabala que lhe lembra a de Joseph K., protagonista de O Processo).
O exilado e bem-sucedido Max Brod não age por livre arbítrio incondicional, sendo que, no longo percurso de promoção da vida e obra do falecido amigo, conta com a camaradagem e apoio crítico de uma tal Esther Hoffe, sua assistente pessoal. O relato oficial diz-nos que só os unia uma amizade forte, tão forte que se estendia à salvaguarda dos manuscritos de Kafka. As folhas escritas pela mão do autor não seriam esquecidas com o escoar sucessivo das edições revistas por Brod. Voltariam à ribalta pontualmente, nem sempre pela mais nobre responsabilidade da investigação científica, mas pelo lucro que parte do espólio traria à família Hoffe, já que os preciosos manuscritos que restavam são herdados por Esther, uma vontade expressa pelo testamento do falecido Max Brod. A posse de tamanho tesouro, cobiçado por coleccionadores e na mira constante das maiores leiloadoras da Europa, tornam Hoffe a pessoa que mantém viva a discussão sobre a legitimidade de se herdar Kafka e explorá-lo de modo a obter lucro. Esther e suas filhas, que, após a morte da mãe em 2007, herdaram o magro espólio que sobreviveu aos leilões, não podiam justificar o que as ligava a Kafka, excepto os laços que tinham com Brod. O caso é remetido para tribunal, onde é discutido se os (ainda inéditos) textos de Kafka não serão um interesse nacional de grande importância para o Estado de Israel e a Biblioteca Nacional em Jerusalém.
Sucede-se a pergunta absurda: a quem pertence Kafka? Não há uma resposta certa. Aos compradores privados que licitaram os manuscritos originais em leilões. À família mais próxima do autor e, por consequência, à República Checa. Ao Estado de Israel, por Kafka ser sionista. Às filhas de Esther Hoffe, porque fora legitimada por ser assistente e possível amante de Max Brod. À Alemanha, pela dedicação de Kafka à língua alemã. Assim, Israel evoca as atrocidades nazis para retirar mérito à posse germânica do espólio do autor checo. Já os alemães consideram ter os melhores especialistas para assegurar as edições definitivas que fixem os textos do autor sem a revisão de Brod. No virar de Junho para Julho de 2015, os tribunais de Tel Aviv decidem que Eva Hoffe, filha de Esther, não tem direito a manter os restantes manuscritos que restam. Visto ser aceite que Max Brod teve a atitude correcta em conservar e explorar os escritos de Kafka, pouco restará aos familiares vivos mais próximos. O checo, judeu, que escrevera em língua alemã, permanece assim, fragmentado, na sombra das vozes críticas que consideram que o seu último desejo foi violado.
Kafka quis ver a sua obra em chamas. Um fogo diferente do ódio incendiário dos nazis. Um fogo de resignação, um fogo privado. Não foi capaz de levar adiante, pelas próprias mãos, essa sua vontade dos últimos dias, como António Guerreiro (no artigo do Público “Só, como Franz Kafka”) repesca de Reiner Stach, que legitima Max Brod, pois, parafraseando, Kafka saberia com certeza que o amigo não cumpriria a sua vontade. E é este o exemplo perfeito do plano mitólogico em que o checo, judeu, que escrevera em língua alemã, se insere. Especule-se as suas intenções. Isso que é saber a vontade de um homem quase morto. Isso que é, como um actor de método, encarnar a mente de um homem à beira do nada.
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