Como embaixadores da “marca Portugal” na literatura, contam-se pelos dedos de uma só mão quem chegue perto de José Saramago. Afinal de contas, ser laureado com o prémio Nobel resulta num aumento exponencial de popularidade e venda de exemplares urbi et orbi, para não nos determos muito na óbvia consagração que (quase) garante a imortalidade do nome e obra do autor. O desagrado de alguns talvez possa incidir nas convicções de esquerda – e por ordem natural, o ateísmo – do único Nobel português até à data deste texto.
Recuemos a 1992. António Sousa Lara tem uma barba esculpida invejável, semelhante ao corte que se vê num retrato pintado de Pedro Nunes, um dos matemáticos europeus mais brilhantes da centúria quinhentista. Militante do Partido Social Democrata e anteriormente do Partido Popular Monárquico, o sangue nobre é-lhe um privilégio intrínseco. Sousa Lara, Subsecretário de Estado da Cultura do governo de Cavaco Silva, assume o papel de cruzado moderno e, desta feita, a ameaça centra-se no comunismo português do pós-PREC. Todo o cuidado é pouco: na mira está uma franja da sociedade composta por intelectuais hereges.
Recuemos ainda mais. Em 1969, Saramago adere como militante ao então ilegal PCP, sendo desde sempre um opositor do devaneio conservador enraizado na esfera influente da sociedade portuguesa. A partir de 1971, trabalha nas redacções de respeitados jornais, ora o Diário de Notícias, ora o Diário de Lisboa, sendo opositor ao marcelismo.
Voltando a 1992, Saramago vê negada a candidatura de “Evangelho Segundo Jesus Cristo” ao Prémio Literário Europeu desse ano, decisão de Sousa Lara subscrita pelo governo cavaquista. Estado laico, sim, mas pouco. Numa entrevista ao jornal Público, Saramago, sobre o antagonista, responde como se tratasse da sua inconfundível voz literária: “Se o físico das pessoas diz alguma coisa, o rosto de Sousa Lara, o seu modo tão suave parecem incompatíveis com tal atitude. Lembro-me, porém, que nas galerias de pintura, quer aqui, quer em Espanha, os retratos de inquisidores apresentam semelhanças, uma espécie de ar de família, entre o senhor Sousa Lara e os seus antepassados do Santo Ofício.”
Ainda em 1992, ao mesmo jornal Público, o Subsecretário justifica a sua decisão. Não se trata de um ataque ao PCP (e respectiva ideologia) mas sim, segundo adianta no debate sobre a Cultura na Assembleia da República, uma resposta à desvirtuação do “património religioso dos portugueses”.
Só em 2004, o quarto homem – e grande anfitrião – da Cimeira das Lajes e primeiro-ministro de passagem, Durão Barroso, ministro dos Negócios Estrangeiros durante a polémica à volta de “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, procura a reconciliação com Saramago, convidando-o para um almoço em São Bento onde o atrito é resolvido formalmente: é anunciada a criação da Cátedra José Saramago na Universidade Autónoma do México.
Porém, para destoar de qualquer irracionalidade partidária – mesmo sendo afecto ao PCP -, é também em 2004 que Saramago apelará ao voto em branco. Mas vejamos os bons modos do antagonismo: Sousa Lara reforça a validade da sua decisão em 2004, por alturas da reconciliação com a administração de Barroso. “Se tivesse escrito bem sobre Cristo, ficava-lhes bem, agora aquela obra sobre Jesus Cristo não lhes fica bem, com certeza.”
Em 2008, o mesmo volta a insistir, afirmando que Caim prova a reincidência de Saramago na afronta aos católicos. Sem algo que se assemelhe ao Tratamento Ludovico na remota casa de correcção em Lanzarote, não há forma de acalmar o perigoso delírio ateísta do Nobel da literatura.
O exílio voluntário para Lanzarote é “simbólico”, já que as visitas a Portugal são constantes e Saramago mantém um apartamento “tão impessoal quanto uma suite de hotel” (segundo a visão Fernanda Eberstadt) no bairro de Alvalade, Lisboa. Mesmo assim, a mudança para Lanzarote é oficial, corre o ano de 1993. A ilha possui uma superfície com menos de 850 km², onde residem cerca de 117 mil habitantes. É um pequeno paraíso petrificado de origem vulcânica. A natureza cénica não deixa de ser uma novidade no que toca ao lugar-comum no imaginário de retiro de escritor, assemelhando-se mais, no reino dos símbolos, a uma fortificação que oferece protecção de alguém ou de algo.
A ideia de residir fora de Portugal já era contemplada antes do caso Prémio Literário Europeu. Na entrevista de 1989 ao El País, o tom de Saramago é de presságio: “Não sei até que ponto este país [Portugal] precisa de mim, mas sei até que ponto eu preciso dele. Este país agrada-me até naquilo que tem de menos bom. Há uma relação muito mais importante do que isso que se chama patriotismo; é uma relação carnal, de raízes. Tenho-a. Sobretudo, procuro saber quem sou, nunca como um ser individual, mas como alguém que está nesta coisa que é um povo e uma história.” Irá morrer em Lanzarote, a 18 de Junho de 2010. O corpo regressa a Portugal para ser cremado em Lisboa, no Cemitério do Alto de São João.
Fotos de João Francisco Vilhena, retiradas do livro “Lanzarote – A janela de Saramago”
Sem Comentários