Façamos um exercício de jornalismo desportivo. As estatísticas serão parte imprescindível deste parágrafo e, de modo a servir a curiosidade pelas diferenças e semelhanças entre o homem de hoje e o seu antepassado, façamos comparações. Ora, em 1930 tem lugar o primeiro Mundial de Futebol Masculino da FIFA, decorrido entre 13 e 30 de Julho. Vence a selecção uruguaia, em segundo lugar fica a Argentina e, no terceiro e quarto lugar, os EUA e a Jugoslávia, respectivamente. Estes quatro mencionados são os finalistas entre as 13 selecções participantes. Foram marcados 70 golos, uma média de 3,89 por jogo, sendo Guillerme Sable (do Uruguai) o melhor marcador com 8 golos. Comparativamente ao futebol moderno, busque-se, a título de exemplo, o Mundial de 2014, no Brasil: tendo em conta que passam a ser 32 equipas, oriundas de 5 confederações, são marcados 171 golos em 64 jogos, o que se traduz num decréscimo de eficácia em relação a 1930, já que o melhor marcador é James Rodriguez, com 6 golos, e a média baixa para 2,89 por jogo. Metemos Nuno Markl – esse fervoroso adepto – ao barulho e concluímos que o futebol já foi mais técnico.
Agora, ilustre-se com um quê de visão manniana: rapaz, 17 anos de idade, uma carreira promissora no futebol, vê o seu sonho impossibilitado pela tuberculose. Ainda 1930. Então doença incurável, resta-lhe o repouso absoluto (leia-se temporada de invalidez), esperando que cada novo dia equilibre as probabilidades – se vive ou morre. Recupera, mas uma carreira no desporto torna-se inviável. Há vocação para a escrita e toda a destreza mental que daí advém, por isso, passa a ser prioridade. Dar-lhe-á o sucesso que outrora previram quando ocupava a posição de guarda-redes nos júniores do Racing Universitaire d’Alger (RUA ou RU Alger). Fosse como fosse, sabendo nós que a História só é reescrita em condições muito especiais, parecia inevitável Albert Camus destacar-se da média.
Em 2010, Jack Bell escreveu para o The New York Times um artigo intitulado “Philosophy Football”. O clássico sketch dos Monthy Python surge-nos de imediato, já que a associação é natural quando se lê futebol e filosofia na mesma frase. Esse trecho de Flying Circus é, inclusive, um apêndice do artigo em questão. Escrito como antevisão ao Mundial de 2010 na África do Sul, Bell debruça-se sobre o livro de Mark Perryman – Philosophy Football: Eleven Great Thinkers play it deep –, uma aposta da Penguin Books que visa encontrar a ligação entre onze pensadores e hipotéticas posições no meio-campo, enquadradas na corrente de pensamento pelo qual são mais conhecidos (não necessariamente as que os eleitos julgavam defender, se é que alguns defendiam mesmo coisa alguma). O artigo adianta que jogam em 4-4-2, tendo até Bob Marley como um dos pontas-de-lança. Mas vamos ao que interessa. A escolha de Camus para guarda-redes – número 1 – é óbvia, porém não se justificando pela sua passagem no RU Alger. Deve-se, sobretudo, às características individualistas dos melhores guarda-redes, e à responsabilidade que apresentam na possível decisão de um jogo.
À margem do debate sobre os seus princípios existencialistas ou absurdistas (o autor demarcava-se de ambos os rótulos), Camus considerava o individualismo parte da essência humana, acompanhado pelo livre-arbítrio e a rebelião. Mesmo que teoricamente compatível com os ideais de bravura e resiliência, qualidades do desporto de competição, não deixa de contrastar com a inquestionável rigidez táctica e severa disciplina que acompanha os jogadores ao longo da sua formação e carreira. Entre as várias frases célebres de Camus, há uma que incide sobre o seu desporto de eleição: “depois de vários anos em que vi muita coisa, aquilo que sei com maior certeza sobre moral e dever, devo ao desporto e ao que aprendi no RUA”. A fonte é uma publicação académica da sua Universidade, decorriam os anos 50. Contrário ao embrutecimento que Jorge Luis Borges considerava inseparável do futebol, para Camus era exemplo dos aprimorados valores morais da sociedade ocidental, mesmo que tal abarcasse práticas servis, de culto ou até um cego sentimento de pertença – um motif absurdista que crê na coerência através de um sistema incoerente.
O autor de O Estrangeiro teve um percurso efémero que findou antes do auge do RU Alger na modalidade de futebol. Não integrou o onze que ganhou por duas vezes a copa Norte Africana, em 1932 e 1937. Tampouco fez parte dos convocados que venceram o Campeonato Norte Africano em 1935 e 1939. A partir da década de quarenta, a relevância do RUA no futebol desvanece-se, dando lugar a vitórias de maior expressão no basquetebol ou no rugby. À época, o futebol na Argélia era manifestamente colonial. Entre os franco-argelinos (pieds-noirs) estava a família de Camus. O processo de descolonização, que culminou em guerra, faria com que a liga de futebol da Argélia se dissolvesse em 1962, dando lugar, no ano seguinte, à Federação de Futebol Argelina. Dois anos antes, Camus falecera num acidente de viação.
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