Traumatismo craniano, rim perfurado, fígado danificado, colapso intestinal, esfíncter paralisado, três quartos da visão perdida no olho esquerdo, queimaduras por todo o corpo – umas mais graves que outras. A data é 17 de Março de 1954. Ernest Hemingway enumera o resultado de dois acidentes de aviação consecutivos que sofreu no Uganda numa carta a Kit Figgis que, com o marido, teria assistido o casal Hemingway no rescaldo da tragédia.
Somado ao Pulitzer do ano anterior (10 de Dezembro de 1953), recebido pela obra O Velho e o Mar, é o quinto americano a receber as honras do Nobel da literatura. Devido ao estado em que ficou depois dos acidentes de aviação não pode comparecer à cerimónia em Estocolmo.
Aquando do episódio em África, Hemingway tinha 55 anos e estava casado com Mary Welsh desde 1946. Mary, referida sobretudo como a esposa Hemingway, teria sido, a par do marido, pioneira no jornalismo de guerra no contexto da libertação de Paris em 1944. O objectivo da viagem que resultou em desastre seria chegar aos sítios mais remotos do Uganda, um presente para Mary. Lá, a vida selvagem triunfava e o entretenimento de grande parte dos visitantes era o “big game” – animais caçados sobretudo por lazer -, termo associado à caça de leões, elefantes, búfalos, leopardos ou rinocerontes.
Dados como desaparecidos por não chegarem, como previsto, a Masindi, o avião turístico onde viajavam os Hemingway despenhou-se na selva. Resgatados, foram levados até Butiaba onde, pela segunda vez, o avião de salvamento se despenhou mal descolou. O uso da palavra “unhurt” pela Associated Press a 25 de Janeiro de 1954, em ambos os acidentes, contradiz aquilo que se viria a saber depois, e o qual Hemingway faria questão de destacar na referida carta a Kit Figgis.
Ernest e Mary encontravam-se em solo africano desde Agosto de 1953. Visitaram intensivamente parte do território a Este do continente, destacando a imprensa da época a passagem pela reserva natural que é envolvida pelo monte Kilimanjaro, bem como pelo Kenya envolvido no tumulto da revolta Mau Mau. Como resultado, Hemingway escrevera um longo artigo sobre a experiência africana para a revista Look, terminado antes dos acidentes.
Meses depois, o escritor continua a ocultar à maioria a gravidade dos acidentes e a levar o alcoolismo para um patamar sem precedentes. Em Veneza, Mary revela aos amigos a condição em que Ernest se encontra, algo próximo da lista que este escrevera na carta a Kit Figgis mas com novidades: protusão discal, luxação do ombro e mais queimaduras – de segundo grau – resultantes de outro incidente, desta vez um incêndio durante uma viagem de pesca.
O autor de Por Quem os Sinos Dobram e o Sol Nasce Sempre (Fiesta) nunca mais foi o mesmo. Estava a tornar-se no oposto frágil da figura de homem idílico que tanto se esforçava por passar, uma imagem que tanto tinha de bravura machista estereotipada como de sensibilidade intelectual. A 2 de Julho de 1961, passados 7 anos da tragédia em África (e também depois da experiência em Cuba em tempos de revolução, deixando para trás a mítica Finca La Vigía), Hemingway está em sua casa, no Idaho. Não acorda a mulher e veste aquele que é conhecido como o “robe de imperador”. Usa a caçadeira com que mata pombos para suicidar-se. A viúva recusa aceitar a morte como intencional e declara que se tratou de um acidente. Quando cede à evidência, já se passaram meses.
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