Das muitas formas de fazer poesia há uma que, ora se introduzindo no tema fundamental de um poema, ora plasmando o tema e a forma, tem vindo a acontecer com crescente frequência, sobretudo naquilo que heterodoxamente podemos chamar “a nova poesia portuguesa”, e que consiste num caleidoscópio nem sempre homogéneo ou orgânico de perguntas a incidirem sobre a gênese, a estrutura ou a função de um poema; i.e., o processo de escrita curva-se sobre si próprio e desta paralaxe do olhar desencadeia-se o mecanismo de monólogo a duas vozes pelo qual o poema pergunta a si próprio, acordado do seu sono dogmático: porque é que nascemos?
Este questionamento tem uma dupla raiz: por uma parte e sobrecarregado pela tradição, o poeta tenta, pela manipulação experimental da forma, que o poema se estique até que, por contacto mais ou menos premeditado, consiga ultrapassar, em algum ponto, o património de adquiridos em que se insere e ajude a fazer a luz sobre uma região até ora intocada da cartografia herdada; mas existe também um questionamento, por outro lado, que não tem como propósito romper com a tradição ou alargar o território, e que visa, outrossim, escudar-se numa inquisição contínua pela forma como modo de esconder a indecisão relativa ao fundo.
Esta “distracção metafísica”, como lhe chamaria Kant, não reside forçosamente numa ausência de conteúdo, ou seja, de uma experiência capaz de ser veiculada ou de uma invocação aparentemente estéril. A poesia (e a arte em geral) são aguilhoadas pela inquietação e, assim sendo, é difícil para o poeta conter a necessidade de veicular por escrito a sua urgência. Essa urgência, porém, pode não corresponder a uma experiência suficientemente maturada para fazer nascer um poema. A necessidade cumpre-se na forma possível, e dessa inquietação nasce muito da “nova poesia portuguesa” (que não me canso de por entre aspas, por muita não ser tão nova assim, e por me quedar tão longe de a conhecer adequadamente em extensão e profundidade), rodopiando sobre si própria na angústia de explicar o seu inusitado acontecimento e, aparentemente, só uma coisa acontece: o poema fala para o poema sobre o poema, e, não advindo mal nenhum ao mundo com isso, é sintomático de uma certa inexperiência vital ou de uma incapacidade para digerir essa experiência até a tornar intersubjectiva.
Valério Romão nasceu em França, em 1974. Foi três vezes seleccionado no concurso nacional Jovens criadores (2000, 2001, 2002), duas em prosa, uma em poesia.
Foi o representante português da área de literatura na Bienal de Jovens Criadores da Europa e do Mediterrâneo, em 2001, na Bósnia-Herzegovina.
Licenciou-se em Filosofia.
Publicou “Autismo”, em 2012, “O da Joana”, em 2013, “Da Família”, em 2014, pela Abysmo, “Facas”, pela Companhia das Ilhas, em 2013, e “A Mala”, pela Guilhotina, em 2014.
Foto: Vitorino Coragem
Sem Comentários