Depois de um começo assim para o morninho, o segundo e último dia do Vodafone Mexefest foi um autêntico festim para melómanos profissionais e ouvintes de circunstância. Para a história futura do festival fica a incrível prestação dos Whitney em formato duo, bem como um concerto tremendo de Kevin Morby. Curiosamente, autores de duas das melhores rodelas de 2016, respectivamente “Light Upon The Lake” e “Singing Saw”.
Começámos por espreitar Joana Barra Vaz, que trouxe à Casa do Alentejo o espírito de mergulhador presente nas suas flumes, cumprindo o sonho de tocar num lugar que lhe trazia à memória o Alvito, esse lugar que tem brilhado no mapa musical português por ser a terra de pousio criativo de Luís Nunes – que, artisticamente, assina como Benjamim, isto depois de ter enterrado o filosófico Walter -, que tem gravado discos para meio Portugal. Escutou-se uma pop tranquila, como uma sucessão de ondas anãs a chegarem tranquilamente à praia, som que ao vivo ganha alguma agitação – e que aqui contou com a ajuda de 7 elementos onde se incluíam duas meninas do coro que não ficariam mal num quadro pintado pelas Au Revoir Simone.
A Estação do Rossio recebeu Kevin Morby, rapaz que este ano lançou o fantástico “Singing Saw”. Vestido a preceito e pronto para qualquer gala, Morby – acompanhado de uma guitarrista, um baixista e um baterista – mostrou que a reinvenção da folk americana está em muito boas mãos, seja para cantar o amor trágico ou elevá-lo através da poesia.
O início ainda fez temer um apagão vocal, com a voz perdida nas várias camadas sonoras, mas “Harlem River” tratou de fazer descansar o público, numa versão onde não seria difícil imaginar Cohen a parar num bar do deserto para uns valentes shots de tequila – ou, se preferirem, Kerouac a partir estrada fora cumprindo o sonho rodoviário americano. “All of my life”, retirado do anterior “Still Life”, é Bob Dylan só que bem cantado, um hino ao lado mais trágico e irreparável do amor. Em “Destroyer”, as guitarras conversam uma com a outra oferecendo um final de banda sonora que ficariam bem no genérico de um remake de Hill Street Blues. Em “Miles, miles, miles”, belíssimo tema retirado de “Harlem River” – disco de 2013 -, surge a chegada do nevoeiro, convidando a uma valsa dos amantes em rotação máxima. Electricidade e pousio, amor e literatura, num concerto que mostrou que dos muitos nomes que por aí andam Kevin Morby poderá bem ser o novo rei da folk norte-americana para os tempos vindouros.
Elza Soares andava, desde o princípio do Mexefest, na boca de toda a gente. Uma mulher com uma história de vida capaz de alimentar uma biografia em vários volumes ou uma produção da HBO ao nível da Guerra dos Tronos, mas que a própria tratou de contar – e sobretudo cantar -no apocalíptico “A Mulher do Fim do Mundo”, disco lançado este ano por esta artista brasileira de 79 anos que já viajou, numa carreira muito respeitável, do jazz à soul ou do funk ao samba.
O pano sobe para revelar lady Elza Soares, sentada num trono com o seu ar espectral, uma rainha das aranhas com um vestido feito de teias cinzentas. A cerimónia abre com “Coração do Mar”, mostrando o lado mais assombroso e desviante do samba e da música brasileira. “Boa noite Portugal, boa noite minha gente. Gostaram? Eu quero ouvir barulho pra xuxu. Ninguém calado, ninguém parado“, incita, antes de nos falar sobre o fim do mundo e de acender a “Luz Vermelha”. O concerto prometia, mas tivemos de cumprir o desígnio maior a que nos havíamos proposto desde o início: acompanhar o concerto dos Whitney no Tivoli de uma ponta à outra, subindo a Avenida empurrados por um pequeno dilúvio.
Depois do cenário que havíamos encontrado em Elza Soares, com uma horda de músicos e um lado cénico e teatral elaborado, o palco do Tivoli parecia estar preparado para um concerto de café: duas cadeiras pretas daquelas que encontramos na pastelaria do bairro, uma guitarra acústica a piscar o olho a uma prima mais eléctrica, um microfone encostado a um solitário PA. Tudo isto num palco gigante, o que não deixava de parecer desolador. Pura especulação enganosa.
Tocando muitas vezes em septeto, os Whitney surgiram em palco numa versão strip, confinados ao seu núcleo duro constituído por Max Kakacek e Julien Ehrlich. Assim como se tivesse vindo a Whitney tendo a Houston ficado em casa. Porém, aquilo que poderia pressagiar uma catástrofe veio a revelar-se um concerto do outro mundo, com os rapazes a assumirem uma versão americana de uns Kings of Convenience num concerto que, de uma ponta à outra, foi acompanhado de muito humor e vinho tinto, bebido quase sempre das garrafas. Sim, porque ainda houve tempo para pedir mais uma garrafa ao road manager da banda, que foi obrigado a vir agradecer os elogios da banda – “Salva-nos de morrer ou de overdoses tramadas” -, isto entre muitos beijos e abraços. Afinal, tratava-se do último concerto da tour europeia, pelo que esta noite valia mesmo tudo.
Depois de alguns acordes de “Golden Days”, a magia surge na voz de Julien. Se no disco esta parece estar por detrás de um pequeno filtro, aqui surge despojada de qualquer artifício ou subterfúgio, revelando-se um verdadeiro achado. “Uau, está muita gente por aqui“, atira ao mesmo tempo que avisava que podia estragar tudo esta noite, partilhando também o facto de nos últimos dias terem escrito um novo tema em Lisboa. Mais para a frente o público ainda pediu que a canção fosse tocada, mas nem a vertigem alcoólica os fez saltar no vazio.
Em “Dave’s Song” ouvem-se as primeiras palmas, seguindo-se um momento a la Matt Berninger em que Julien bebe por uma garrafa de tinto e volta a confessar que não esperavam ver tanta gente, e que nem toca assim tão bem guitarra para se meter nisto – ele que faz normalmente uma perninha como baterista da banda. Revela que os outros membros decidiram passar o Dia de Acção de Graças com a família, aproveitando Max para ripostar com um “se pensas que eu vou cantar estás enganado“. O estado era decididamente de graça.
A banda decide então oferecer uma cover de “Tonight I’ll be staying here with you”, de Bob Dylan, antes de tocarem “Polly”, aquela onde Julien disse ser mais provável meter águacabo – não meteu. “Is Anyone drunk?“, pergunta enquanto se serve de mais um copo – de uma golada, neste caso -, acrescentando que aqui no burgo “toda a gente bebe durante o dia, é muito porreiro“. Um amor que serve para falar da recente situação política americana e de como esta mexeu com muitos americanos: “Se o Trump lixar aquilo tudo vão ver muitos mais de nós por aqui.”
Segue-se “Light Upon The Lake”, tema-título de um dos mais belos discos deste ano, uma canção que Julien diz ser sobre a ansiedade. A banda avança depois para mais duas covers, primeiro de “The only way out”, de Dolly Parton, escrito por esta quando tinha 18 aninhos, e “Early Blue”, de F.J. McMahon, tema “mais melancólico e menos passional” que o anterior.
“No Matter Where We Go” chega numa versão desnudada com direito a uma reprise apenas para se ouvir o solo que Max toca enquanto, normalmente, o resto da banda vai partindo a louça. Estamos na recta final mas ainda se escuta “The Falls”, tema sobre “partying too hard“. Julien aproveita a deixa e diz que um carro os virá buscar uma hora depois do concerto para os levar ao aeroporto, mas que com jeitinho ainda poderão ficar um tempo nos copos e na conversa com quem estiver disposto a isso.
Para o final fica “Follow”, escrito enquanto o avô de Julien estava a morrer, mas que representa uma celebração da vida. Afinal, “sometimes you just die“. A banda questiona-se como deverá terminar o concerto, brindando o público com “No Woman”, que teve direito a coro e uma ovação de pé. Elza Soares pode bem ter sido a mulher do fim do mundo, mas a verdade é que, depois disto, iríamos com os Whitney ao Inferno se fosse preciso. Um concerto que fica para a história do Mexefest, mostrando que as canções, quando são grandes, até podem ser tocadas com ferrinhos. Voltem depressa rapazes.
Galeria fotográfica (fotos de Luísa Velez).
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