Mesmo quem não ligue ao rock de matriz mais blues ou a guitarras eléctricas, é impossível ficar indiferente ao lançamento de um novo disco dos The Rolling Stones. Primeiro, porque são três homens quase octogenários (Mick Jagger fez já os 80) que continuam a cantar e a tocar como se tivessem 18, o que lhes confere uma espécie de aura de atracção de feira – que, por muito que queiramos, não conseguimos evitar; segundo, porque nunca ninguém fez isto antes. Nunca houve uma banda tão duradoura e, especialmente, tão relevante.
Claro que esse “relevante” se confunde muita vez com o estatuto. Os Stones têm uma máquina promocional gigantesca, que permitiu colocar o logotipo da banda na frente das camisolas do Barcelona no último clássico contra o Real Madrid. Que outra banda, perdão, que outra empresa se pode dar ao luxo de fazer isso? A semana passada, o novo disco, “Hackney Diamonds”, estava em primeiro lugar nas listas de 14 países diferentes. É um disco realmente bom ou é fruto dessa máquina bem oleada? O que veio primeiro: o ovo ou a galinha?
A verdade é que os elogios ao novo trabalho se têm empilhado numa torre de Babel, que vai já bem alta. “O melhor disco desde 1981”, ano de “Tattoo You”, é talvez aquele que se houve mais. E, mesmo sem o ouvir, a maioria das pessoas vai perceber que isso é manifestamente exagerado. Até porque é preciso admitir que os discos dos anos 90 não são assim tão maus. “Voodoo Lounge” é mesmo um belo disco, talvez o melhor da fase de estádio dos Stones. Mas vocês ainda não estão preparados para esta conversa.
Vamos então a “Hackney Diamonds”. Felizmente, o Deus Me Livro tem ao seu dispor este escriba, que não só escreve manifestamente bem como é provavelmente o único fã dos Stones que consegue fazer uma crítica ao disco sem viés. Que privilégio, hein? Aliás, quando a banda revelou o primeiro single, “Angry”, e andavam os maluquinhos da banda aos saltos por ser uma grande malha rock(?), eu temi o pior. “Angry” parece uma música dos Stones feita por inteligência artificial, como se o Mick Jagger tivesse feito log in no ChatGPT e tivesse pedido um tema à Stones.
Mas os Rolling Stones têm, também, uma tradição em lançarem como single inaugural dos discos um tema mais fraco – e mantiveram-na em 2023. O segundo single, “Sweet Sounds of Heaven”, é mesmo um dos pontos altos de “Hackney Diamonds”. Um gospel que vai crescendo ao longo de mais de 7 minutos, com a contribuição de Stevie Wonder e de Lady Gaga. Um dos problemas em ter uma carreira de 60 anos é que vamos inevitavelmente comparar tudo o que os Stones façam hoje a algo que já fizeram no passado. É por isso inevitável mencionar “Gimme Shelter” ao falar de “Sweet Sounds of Heaven”. No entanto, Lady Gaga não é nem de perto nem de longe Merry Clayton. E, apesar dos esforços – Lady Gaga também já interpretou “Gimme Shelter” ao vivo com a banda -, dava o mindinho para ver esta cantiga gravada com Clayton.
Um dos motivos de interesse deste disco são os convidados especiais. E se é giro ver o Elton John em dois dos temas – ele que tem um passado de pegas com Keith Richards: é especialista em fazer músicas para loiras mortas, disse o guitarrista; Richards parece um macaco com artrite, respondeu Elton John -, o convidado de maior destaque é mesmo Paul McCartney. E isso porque “Bite My Head Off” é um dos bons temas do disco, uma punkalhada que podia estar em “Some Girls”. Mais uma vez é impossível não pensar também nas comparações com “I Wanna Be Your Man”, a canção que McCartney e John Lennon ofereceram aos Stones em 1964 – e que toda a gente sabe que a melhor versão é aquela ao vivo que está no disco de Keith Richards, com os seus X-Pensive Winos. E quem era o baterista? Exacto, Steve Jordan, que agora é um Stone de pleno direito.
Steve Jordan substituiu Charlie Watts depois da morte deste, há dois anos, e gravou já quase todo o disco (há ainda dois temas com Charlie Watts, mas estão lá mais por tributo do que por relevância). É certo que é um óptimo baterista, mas nota-se uma grande diferença no estilo actual dos Stones. Quando Bill Wyman (que também voltou ao estúdio para participar num tema deste disco) saiu dos Stones e o lugar passou a ser ocupado oficiosamente por Darryl Jones, a diferença não se notou tanto. É que, enquanto a bateria de Watts era toda ela classe e sofisticação, a de Steve Jordan é uma locomotiva imparável. E isso resulta numa música mais cheia e mais rápida, não necessariamente melhor. Mas o mais curioso disto tudo é que, aos 80 anos de idade, os Rolling Stones têm agora uma secção rítmica com dois afro-americanos, eles que sempre foram uma banda de tributo à música negra norte-americana.
Em “Hackney Diamonds”, os Stones têm ainda mais uma rockalhada, que anda ali entre o cânone da banda e o refrão orelhudo meio radio friendly. Chama-se “Get Close” e, pela primeira, são os Stones a parecer mais os Aerosmith daquela fase pós-“Get a Grip”. O que também é curioso, já que a banda de Steven Tyler passou toda a carreira a parecerem sempre os Stones. Mas é o solo de saxofone de James King que faz toda a diferença, e que ainda serve para prestar tributo ao saudoso Bobby Keys.
O que há com fartura em “Hackney Diamonds” são as baladonas, que Mick Jagger parece adorar cada vez mais (basta ouvir os seus discos a solo) e que mais ninguém quer ouvir. “Dreamy Skies” é, no entanto, um óptimo tema country, com a slide guitar de Ronnie Wood a brilhar.
Tenho uma teoria sobre os discos dos Stones. Desde 1969, todos os álbuns da banda têm sempre um tema cantado por Keith Richards. E a minha teoria é a de que os discos são tão bons quanto esse tema é bom. A prova: qual o melhor disco dos Stones? “Exile On Main St.”. E qual é o tema que Richards canta aí? Exacto, o “Happy”. I rest my case. Posto isto, olhemos para “Tell Me Straight”, de “Hackney Diamonds”. Uma balada desinspirada que, sem ser propriamente má, é maioritariamente esquecível. Não é assim também “Hackney Diamonds” durante grande parte do tempo?
No fim, o álbum acaba com “Rolling Stones Blues”, uma versão do blues homónimo de Muddy Walters (da sua fase do Mississippi, antes da electrificação em Chicago), a quem a banda foi pedir o nome emprestado. Se nunca mais gravarem um disco, esta é a forma perfeita para os Stones encerrarem uma carreira de 60 anos, fazendo um círculo perfeito. Touché!
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