Há um homem em palco, sozinho, atrás de uma bateria, a martelar um ritmo empolgante com as botas de cowboy no bombo e na tarola, com a guitarra em punho a criar riffs encardidos e poeirentos. Em volta, vários apetrechos: uma panóplia de pedais de distorção, um ou outro microfone com efeitos e até um kazoo endiabrado.
Desde “Naked Blues”, álbum de estreia editado no remoto ano de 2002, tornou-se frequente encontrar o músico Paulo Furtado nestes preparos, que criou a “persona” de The Legendary Tigerman com base nesta encarnação de blues band de um homem só.
Em 2009, o lançamento do genial “Femina”, disco de duetos com notáveis senhoras como Asia Argento, Peaches ou Rita Red Shoes, atraiu ampla visibilidade ao projecto. Seguiu-se mais um passo seguro, o álbum “True”, de 2014. Mas, chegada a altura de gravar o sucessor, Tigerman sentiu que a fórmula acusava um certo desgaste.
Como qualquer bom criador, o homem-tigre soube desafiar-se e sair da zona de conforto: em Maio de 2016 partiu para a América em direcção ao deserto da Califórnia, numa espécie de road trip criativa. Com o realizador Pedro Maia e a fotógrafa Rita Lino passou 12 dias nas estradas perdidas do Vale da Morte, a filmar em Super 8 a história de um “Misfit” – um viajante em busca do desaparecimento físico e simbólico. O filme chamou-se “Fade Into Nothing”, e serviu de antecâmara e inspiração para o novo álbum “Misfit”.
Foi ali, no centro do deserto de Joshua Tree, que foi também gravado este novo disco – mais exactamente no Rancho de la Luna, estúdio mítico por onde passaram nomes como os Arctic Monkeys, Iggy Pop ou os Queens of The Stone Age.
A diferença mais visível no novo registo é a companhia – ao solitário Tigerman juntaram-se Paulo Segadães na bateria e João Cabrita no saxofone (ao vivo junta-se Felipe Rocha no baixo). Em entrevista recente, Furtado declarou que “não foi um passo totalmente premeditado, foi acontecendo”, mas o que é facto é que o formato “one man band” deu lugar a uma banda de corpo inteiro.
Não foi só o alinhamento que mudou: nota-se em “Misfit” uma viragem em direcção a um som mais denso e compacto – onde “True” era mais refinado e ponderado, com produção e orquestrações polidas, o novo disco faz uma curva em direcção a uma sonoridade mais vulcânica, suja e espontânea.
Há muita América neste disco: aos primeiros riffs distorcidos de “Motorcycle Boy”, a primeira faixa, já aceleramos no asfalto quente de uma estrada interminável, em direcção ao deserto escaldante.
O saxofone barítono de Segadães empresta espessura à guitarra, sem cair em soluções fáceis que poderiam soar a Morphine – Veja-se “Black Hole”, composição genial, carregada de intencionalidade e pinta rock ´n´ roll, ou “I Finally Belong to Someone”, blues com atitude a rodos.
Destaque também para “Red Sun”, que arrisca uma batida repetitiva acompanhada por um sintetizador electro, muito 80’s, fazendo lembrar os Survive, criadores da música de “Stranger Things”.
“Misfit” é um disco cheio de ideias novas, conseguindo uma reinvenção bem-sucedida num género em que não é fácil inovar – mérito de um dos mais talentosos rockers do rectângulo. O registo confirma o bom momento do músico, já patente na digressão conjunta que Tigerman fez com os Linda Martini, a que chamaram “Rumble in the Jungle”.
“Neste tempo em que nem as bandas de rock n’roll estão a tocar rock n’ roll, estava mesmo a apetecer-me fazer um disco de rock n’ roll!”, disse já Paulo Furtado. Missão cumprida com louvor, “Misfit” é um festim.
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