No início, era o blues. Aquele blues sujo, minimal e analógico, despido de ornamentos, que Paulo Furtado praticava nos primórdios da carreira, em álbuns como “Naked Blues” (2002). Contudo, o seu percurso artístico sofreu uma brusca reviravolta em 2009, com a edição de “Femina”, um disco audacioso que trouxe um enorme upgrade ao seu universo sombrio e sensual.
No dia 2 de Abril, Furtado — o icónico The Legendary Tigerman — revisitou esse marco da sua carreira com um concerto, que prometia não só celebrar os 15 anos do disco como, também, resgatar a energia bruta desse álbum essencial.

O ambiente na bonita sala do CCB estava carregado de antecipação. A grande questão era: quinze anos depois, como iriam estas canções ressoar ao vivo? O conceito do álbum — assente na dualidade entre a crueza masculina e a sensualidade feminina — continua indiscutivelmente actual, sobretudo numa época marcada por tanto chinfrim (e alguma naftalina) em volta das questões de género.
Os primeiros acordes de “Life Ain’t Enough for You” embalaram a audiência numa viagem intensa pelo alinhamento de “Femina”, repleta da ferocidade rock’n’roll característica do Homem Tigre. Os temas surgiram despidos de artifícios, com os arranjos simples e minimais do disco original. A guitarra de Furtado, a percussão certeira de Mike Ghost, as vozes e pouco mais. São, como o próprio referiu a dado momento, “canções simples e frágeis”, cuja força reside nesse delicado equilíbrio entre risco e recompensa. Foi assim com “Thirteen”, a cover de Glenn Danzig que soou como uma marcha fúnebre emocional, e também com a sensual “I Just Wanna Know (What We’re Gonna Do)”, interpretada em dueto com a incrível Sara Badalo.

Antes de “No Way To Leave On A Sunday Night”, deu-se um percalço: a guitarra preferida de Paulo Furtado morreu em palco, mas o músico sacudiu o contratempo com naturalidade. Esta música não vive da perfeição técnica, mas sim da simplicidade e da entrega. Mesmo com falhas, o que conta é a atitude rock’n’roll — e, essa, o Homem Tigre tem para dar e vender, sem direito a livro de reclamações.
Viveu-se uma noite plena de momentos memoráveis. A certa altura, Sara Badalo sublinhou a relevância actual destas canções: com os níveis de violência doméstica a atingirem valores inaceitáveis, juntando-se os diversos ataques actuais à condição feminina, torna-se vital afirmar a rebeldia e a confiança da mulher. A escaldante interpretação de “Hellcat” que se seguiu foi a encarnação perfeita desse grrrl power — com a cantora num estado altamente incendiário.

Outros momentos de nota: a intensidade de Cláudia Efe em “Light Me Up Twice”; a ternura com que Paulo Furtado apresentou Helena Coelho, sua esposa, revelando ao público a sua gravidez; a delicadeza de temas como “Summertime” (interpretado por Helena Coelho e Ray) ou “Sea of Love”.
Já no plano mais visceral, destacou-se a energia nervosa de Phoebe Killdeer, a rasgar o palco em “There She Goes” e “& Then Came the Pain”; o autêntico baile de vampiros que foi “Ghost Rider”, dos Suicide; e a presença glamorosa de Rita Redshoes, na magnetizante interpretação de “Sister Ray”.

A verdadeira apoteose viveu-se, no entanto, com “These Boots Are Made for Walking”, o dueto com Maria de Medeiros. Por esta altura, já ninguém conseguia manter-se sentado — estava instalada a balbúrdia roqueira no CCB. O espectáculo terminou com uma versão de “True Love Will Find You in the End”, de Daniel Johnston, tocada na plateia, no meio de uma roda de gente, apenas com a guitarra de Furtado e a voz doce e segura de Sara Badalo.
No final do concerto, a conclusão impôs-se com clareza: passados 15 anos, “Femina” não perdeu o seu fulgor — continua a ser um poderoso manifesto de empoderamento feminino, talvez até mais urgente hoje do que na sua data de lançamento.
—
Fotos: Luís Andrade
Sem Comentários