Se, à moda dos filmes de gangsters ou de uma qualquer outra bandidagem, fôssemos transportados de olhos vendados para junto do Palco EDP do Super Bock Super Rock na noite de 20 de Julho, julgaríamos ter caído no coração do Cool Jazz Fest: o logo da EDP bem cravado no canto superior do ecrã, uma banda respeitável, bem vestida e com uma castiça secção de sopros e, a coroar tudo isto, um veterano da soul chamado Lee Fields. Mas, se é verdade que já em 1988 os Erausure pediam “A Little Respect”, o respeito foi coisa pouco vista sob a pala que, em tempos, susteve um pavilhão português – e, não fosse a paciência e o espírito de guerrilha de Mr. Fields, teríamos estado toda a noite em modo átrio Vasco da Gama.
Aos sessenta e alguns anos, Lee Fields é uma das figuras maiores da soul music que ainda mexem, na linha de um James Brown com uma pitada extra de romance. Com um aprumado fatinho branco e brilhantes suficientes para poder ser considerado tráfico, Fields foi tratando de fazer a apologia do amor – “We can make the world better” foi quase mantra, bem como “We need more love” -, isto enquanto ia pedindo braços levantados a um público onde só conseguia vislumbrar “happy people”.
Apesar das falhas de som e do barulho de fundo, Fields deu um concerto enorme, cativando um público que teve direito a uma versão explicativa de “I Wish You Were Here”, tema dedicado aos já desaparecidos Charles Bradley e Sharon Jones, e a uma interpretação de “Faithfull Man” que saiu das entranhas, como se, ao cantar desta forma, não encontrasse no regresso a casa as malas à porta, isto depois de mulher ter descoberto a sua vida amantizada. You got soul, Lee. You got soul, man.
Quanto aos Parcels, se tivessem surgido em modo mute, muitos pensariam tratar-se de uma boys band inspirada nos anos 70, para quem a praia seria pôr as adolescentes a sonhar com um grande amor ou, no mínimo, com uma paixoneta de verão que acabaria, na certa, com muitas lágrimas e um desarranjo na maquilhagem. A banda australiana, residente na mais ocidental Berlim, deu um dos grandes concertos desta edição, transformando – com atitude e um humor, arriscaríamos, australiano – o Parque das Nações numa pista de dança a céu aberto, como se, em vez de seis da tarde, marcassem antes seis da manhã, e o cenário fosse o da varanda do Lux.
O estado de graça da banda começou logo com “Myenemy”, que trouxe um momento de coro que deixaria orgulhosos os alunos do Santo Amaro de Oeiras. Em “Tieduprightnow”, Patrick Hetherington, o bem-parecido teclista, fez de Bez – o dos inimitáveis Happy Mondays -, só que sem maracas e, provavelmente, sem ponta de ecstasy. Jules Crommelin, o teclista/vocalista com ar de cantor country de café de beira de estrada nacional, faz a sua melhor pose de rocker, perguntando se podia tocar “rock legends” – a banda partilha o facto de Jules pensar que é uma rock star, e que está a aproveitar o facto de estar num festival com “Rock” no nome para se esticar um bocado. Ainda assim o seu momento rock star haveria de chegar mais tarde, depois de uma malha que assentaria que nem uma luva na banda sonora de “Boogie Nights” – o lettering Parcels no fundo do palco mostra, aliás, que esse é o seu universo. “Clockscared” recorda o único bom tempo dos Mumford & Sons, a que mais tarde se vem juntar uma máquina de beats capaz de incendiar qualquer festa. Não falta o clássico “Overnight”, em modo extended mix e quase a descambar para um techno puxado, numa ponta final onde o baterista decide arriscar nas vocalizações – para grande divertimento da banda – e que acaba, de forma surpreendente, num momento à capella que ficaria um mimo no próximo Fever Pitch.
Longe vão os tempos em que os The xx eram aqueles miúdos e miúdas – mais tarde apenas miúda, quando ficaram reduzidos a trio – que se fechavam no quarto, metidos consigo mesmos, e que olhavam para o mundo como um lugar estranho e que não lhes era destinado. A banda que esteve na Altice Arena é uma versão bem mais feliz do que aquela que há uns anos tocou em Belém, e como é bonito ver Romy Madley Croft a dançar de felicidade, de uma ponta à outra do concerto, ou Oliver Sim dedicar “Fiction” à comunidade LGBT, dizendo “I love you. I am one of you”.
A primeira manifestação de vida do público deu-se ainda antes da entrada da banda em palco, quando uma malha de trance psicótico, saída das colunas e da mesa de som, trouxe o primeiro sinal efusivo e alguma fumaça a preparar terreno. No palco acende-se como que um trem de aterragem, que a banda aproveita para se atirar desde logo a “Dangerous” – o tema da sirene incluído no último trabalho da banda, uma rodela que parece ter sido gravada numa festa para os lados de Ibiza.
Chegam as primeiras luzes em modo strobe e um regresso ao passado com “Islands”, do primeiro e homónimo disco, que termina com Oliver a rir de prazer e a lançar um “How are you Lisbon?”. Um discurso que acabou por marcar todo o concerto, tendo Oliver dito que aquele era o último concerto de uma tour europeia de 2 anos, com bebés e muitas aventuras pelo meio e, quanto a Romy – que estava claramente triste com o fechar deste ciclo -, agradecendo toda a energia e amor mostrados.
Ao vivo os novos temas ganham um embalo dançante diferente do disco, mais tribal e, quanto aos temas mais antigos, a reinvenção atinge proporções consideráveis. Em “Crystalized”, por exemplo, Jamie xx estica a corda aos comandos da mesa e da percussão, cabendo a “Sunset” as honras de abertura de uma pista que, a certa altura, recorda uma after part de domingo de manhã no Garage. “VCR” deu lugar a um DVD a transmitir em Full HD, onde no lugar do pôr-do-sol tranquilo surge um rejuvenescedor nascer do sol depois de uma noite difícil. E, se havia dúvidas de que os The xx tinham já deixado de praticar o coito interrompido, método utilizado sobretudo na primeira rodela, bastou pôr os ouvidos em “Infinity”, que parecia querer arrancar para um set desvairado até a manhã entrar pavilhão adentro.
Não faltaram também alguns momentos mais tranquilos, como quando Romy, depois de confessar ter escrito a canção na solidão do seu quarto, dedica “Coexist” a um recém-nascido da sua família. Mas os pontos altos foram sem dúvida deixados para o lado mais incendiário, numa altura em que as luzes disparavam lasers sobre a plateia, tendo “Higher Places” provocado um momento colectivo de dança.
Não tenham dúvidas. Mora aqui uma banda que, através da música, acabou por encontrar a sua essência e, como tão bem dizem os brits, um verdadeiro “purpose”, transformando a tragédia em canções para serem celebradas na pista de dança. E, mesmo que por vezes nos conduzam ao lado mais kitsch de Ibiza, o nosso coração estará sempre com eles. Being as in love with you as I am. É verdade, continuamos apaixonados.
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