Reza a história protestante e católica que, no momento em que decidiu cobiçar um poder maior sem o conseguir esconder do seu mestre, um anjo foi atirado borda fora do Paraíso, obrigado a instalar-se na terra. O que até acabou por não ser mau, uma vez que tinha livre trânsito para calcorrear o mundo terrestre e podia ir a todas as festas hype que aconteciam no inferno, onde para além do bar aberto serviam trevas e pecado como aperitivo. Uma história que John Milton transformou no livro-poema “O Paraíso Perdido”, que narra as penas recebidas pelos anjos caídos, a sua maquinação para que Eva comesse o fruto proibido da Árvore do conhecimento e a subsequente queda do homem, até Cristo entrar em cena e oferecer a remissão dos pecados.
Nascido na África do Sul no ano de 1988, Nakhane teve também a sua ligação ao cristianismo, um estado incompatível com a sua assumida homossexualidade que, nos tempos da adolescência, acreditou poder curar por graça do Espírito Santo. “You Will Not Die”, o seu segundo longa-duração, mistura a luminosidade sem vergonha de Bowie, a alma de Marvin Gaye – de quem é grande fã -, sentidos coros de igreja e batidas electrónicas que levariam à loucura uma noite de quinta-feira no Swing do Porto. Tudo para embrulhar um disco que recria uma – a sua – adolescência turbulenta, em que tentou colar uma sexualidade desviante aos rígidos desígnios da cristandade, percorrendo também ele o Paraíso Perdido de Milton.
Com uma saudação inicial que teria sido um mimo no Star Trek original, Nakhan subiu ao palco da Casa do Alentejo com um outfit que Bruce Lee certamente invejaria, a que não faltaram uns ténis pretos com um salto gigante, uns óculos de sol bem catitas e um fato vermelho de alfaiate queer, que foi aberto aos poucos até revelar um corpete a ser usado na prática de uma arte marcial ou durante uma fantasia mais malandra.
“I’ve heard good things about Portugal, is it true?“, atira depois de “Interloper”, um cruzamento improvável entre uma batida roubada aos Muse, o cenário sonoro de uma encenação dos Wild Beasts e a leitura cantada de um salmo, para se sentar depois ao piano no arranque de “Presbyteria”.
Os óculos são tirados antes de uma belíssima versão de “You Will Not Die”, momento em que Nakhane vai fitando os olhos do público, não se furtando ao contacto directo, com expressões alternam entre a seriedade e o desprendimento, numa noite que teve o encantamento de uma peça de teatro sobre as emoções humanas.
Sempre em crescendo, passou-se do recato de igreja à volúpia pista de dança, com dedicatórias à avó – “Star Red” -, um tema escrito depois de deixar a Igreja, daqueles capazes de converter o ateu mais indeciso – “Teen Prayer” -, e até um cover endiabrado de “Killer”, tema produzido por Adamski que ficou celebrizado na voz de Seal.
Na apresentação dos membros da banda, brincou dizendo que teria gostado de ter tido um Cristo de braços abertos em fundo, com piropos que foram de olhos comidos pelos corvos a uma referência a Tom of Finland a propósito do bigode do baterista, antes do grande e provocatório final com uma dança que faz do varão uma coisa para meninos. Depois de uma era de indecisões, Nakhane arranjou forma de escrever a sua versão alternativa da Bíblia. Ámen e Aleluia.
Galeria fotográfica – (fotos de Madalena Pintão)
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