Costuma dizer-se, no que toca ao acto da criação, que os desgostos de amor são o verdadeiro mel. Exemplos não faltam por aí, antigos ou modernos: em 2002, Beck livrou-se das lantejoulas, abandonou o seu reino luminoso e editou um meteorito chamado “Sea Change”, cantando como até então ninguém havia cantado o desgosto amoroso de um homem crescido; dois anos depois, Sharon Van Etten esmiuçava em “Are We There” uma relação de uma década, que terminou num triângulo constituído pela amargura, a dor e o ressentimento (e não necessariamente por esta ordem); e o que dizer de “Make Way For Love”, o longa-duração de Marlon Williams, que depois de levar uma entrada a pés juntos de Aldous Harding – e à boleia do cancioneiro americano – nos ofereceu o melhor disco de 2018?
Para tentar provar que a felicidade só traz mesmo chatices a quem quer escrever boas canções, ainda se poderia dar o exemplo de Charlie Fink, vocalista dos Noah and the Whale. Quando Laura Marling, farta de ser a menina do coro, o atirou – e à banda inteira – às urtigas para se dedicar a outros desafios, Charlie escrever “The First Days of Spring”, um bonito, desolador e muito desconsolado disco, composto por alguém que trocou a garrafa ou a lâmina nos pulsos pelo caminho da composição refinada. A verdade é que, depois disso, o rapaz lá se endireitou. Provavelmente terá conhecido uma miúda gira e, contente por ter saído do buraco negro, pôs-se a gritar de felicidade em “Last Night on Earth”, uma pirosice de todo o tamanho que nos fez desejar que Fink fosse condenado à infelicidade permanente.
Colocadas as coisas neste ponto, torna-se um desafio tentar perceber uma banda chamada The Saxophones, dupla – aqui em modo trio – que assinou, no segundo dia do Super Bock em Stock, um concerto tão íntimo que, a certa altura, foi como se tivéssemos entrado à socapa no lar de Alison e Alexi, um casal feliz que teve um puto há menos de um ano e que, ainda assim, inventa canções que contêm toda a tristeza do mundo e, também, o lado mais melancólico da beleza lá dentro. Ou, como Alexi Erenkov disse a certa altura a propósito de “Mysteries Revealed”, “sobre coisas zen que não compreendi muito bem, como são a maior parte das minhas canções”.
Num festival onde o lema é ir picando o ponto e não aquecer o lugar, os The Saxophones operaram o milagre da sedução, fazendo esquecer o constante entra e sai que, ainda assim, não retirou à sala o ar encantatório de quem descobriu neles um momento de paz arrancado ao mundo, quase como um momento cinéfilo servido por David Lynch mas com os estupefacientes a ficarem à porta.
Uma solenidade que, a espaços, foi sendo quebrada pela própria banda, fosse para descrever o concerto do Porto na noite anterior como “Really funny”, para partilhar o facto de terem trazido o filho com eles – e também os avós, que trataram do babysitting -, dizer que no dia seguinte iriam ao Oceanário – e que aceitariam de bom grado sugestões de passeio – ou para outro tipo de “small talk”, que ia amenizando a bendita obscuridade a que nos vetaram durante uma hora.
Num som que tanto pisca o olho ao jazz como navega numa prancha em águas havaianas algures nos anos 50, Richard tratou de imprimir uma groove minimalista no baixo, enquanto Alexi se dividia entre a guitarra e a voz, deixando a Alison o comando de uma bateria contida mas certeira, para além de lançar os samplers de teclados e, claro, dos saxofones, cuja presença invisível teve um toque de fantasmagoria. O alinhamento girou em volta do magistral “Songs of the Saxophones”, não faltando o EP “If You`re On The Water”, servido de um fôlego e em modo suite, um novo e muito castiço tema e, a fechar, o belíssimo “Just You”, com Alexi e Alison de pé, dividindo o microfone, num momento a que só faltou terem dançado um slow apertado. Como diria e bem Jack Nicholson, as good as it gets.
Fotos: Madalena Pintão
Galeria Fotográfica 24 Novembro
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