Para os habitués do Super Bock Super Rock (SBSR), versão Meco, há já uma lista mental de pequenas contrariedades escrita no éter: snifar gramas de um pó que teima em não bater; gastar caixas de soro a tratar de olhos e nariz; aplicar desmaquilhante com esmero para não agredir a almofada antes do mergulho no sono; fazer umas máquinas extra de roupa, esperando que o calçado não parta o vidro na agitada centrifugação; passar por uma revista policial ao nível de uma prisão de segurança máxima, fazendo figas para que não chegue ao ponto do strip integral; passar, entre a chegada e (sobretudo) o regresso, algumas horas dentro da viatura – ou à espera de um autocarro que não chega; e, não menos importante, pôr o corpo em modo obstipado, tudo para não enfrentar o risco de entrar em casas de banho que parecem ter sido roubadas de um estaleiro de obras. Contrariedades à parte, seria uma pena que o festival zarpasse para o cinzentismo da urbe, mesmo que não abundem, neste espaço mais recente, as árvores que tanta sombra nos fizeram noutros tempos, quando julgávamos poder apagar os fogos com cerveja.
Entre o rock acnoso dos Måneskin e as escalas cantadas em coro nos Vulfpeck – eleito por aqui o melhor concerto do festival -, o SBSR 2024 trouxe-nos algumas boas surpresas.
Seguem-se postais de poucas linhas com selo de 18 de Julho, dia em que o rock deu cartas.
Alice Merton não teve a vida facilitada, ela que actuou num horário propício a queimaduras solares. Ainda assim, com um outfit tomado de emprestado a um filme de super-heroínas da Marvel (versão Disney), Merton passou com distinção esta sua estreia em Portugal. Sempre a puxar o público para a sombra de uma pop de desamor bem dançável, Merton falou-nos das unidades que se desmantelam depois do que parece ter sido uma vida – “Same Team” – de amizades tão boas – ou ainda melhores – como o amor – “Waste My Life” – ou de alguém que regressa a casa, de olhos esfomeados, após uma viagem imensa com cem histórias para contar – “100 Stories”, canção pedida por um fã através do Insta. Bem bom.
E eis que, do alto estatuto dos seus 60 anos, Tom Morello nos ofereceu – e à muita canalha que ia fazendo tempo até à entrada dos Maneskin – uma frenética masterclass sobre o espírito do rock n roll. Com uma folha de serviço que inclui passagens pelos Prophets of Rage, Audioslave ou Rage Against the Machine, Morello mostrou desde bem cedo ao que vinha: “Irmãos e irmãos, estamos juntos nisto com o espírito do rock n` roll? Comecemos a festa!”. Tendo como papel de cenário um furioso jovem, envergando um casaco de botões e fazendo um decidido pirete com uma mão, enquanto na outra ia segurando uma ameaçadora forquilha, Morello faz deste concerto uma revolução – a dado momento, enquanto solava com a boca, levantou a guitarra onde se podia ler “Ceasefire”. Convidou Thomas Raggi – guitarrista dos Maneskin – a subir ao palco, o que provocou uma vaga de teen spirit capaz de agitar as narinas -, homenageou o desaparecido Chris Cornell – “é mais uma horação em sua memória” – e, quase a fechar, prendou-nos com “uma canção folk portuguesa”, que disse terem treinado com afinco – que era, afinal, o hino maior dos Rage Against The Machine, cabendo ao público cantar toda a letra enquanto Morello alternava entre as cordas e os duplos piretes – e, no fecho, reclamou como Patti Smith o poder para o povo. Afinal, ainda há rock no SBSR.
Tudo errado nesta primeira aventura pós-Arcade Fire de Will Buttler, feita na companhia das Sister Squares. Se, em disco, a temperatura consegue chegar ao tépido, ao vivo estamos perante um desastre. A voz de Buttler é alta e pouco dada à harmonia e, colocadas em terceiro plano, as Sisters também não parecem muito dadas à afinação, em temas que nunca alcançam a grandiosidade. Quando, a dado momento, dedicam uma música à Lua, não é difícil de imaginar que os astronautas, num momento de lucidez, prefiram alunar noutra estrela ou calhau que esteja nas redondezas.
Mais do que o primeiro dia de um festival, este era claramente o dia dos Måneskin. Diziam-no os outfits, a média de idades e a quantidade de bilhetes comprados para o Golden Circle, por gente que queria estar perto da banda na sua primeira vez em Portugal. Ainda não tinham subido ao palco e já os gritos de incentivo se faziam ouvir, prenúncio de uma entrada em grande com “Don`t Wanna Sleep”. A partir daqui foi sempre a subir e, mesmo que Damiano David não esteja a par da relação tumultuosa entre Cristiano Ronaldo e a nação tuga – “Cristiano Ronaldo é o melhor futebolista que já viveu”, disse a dada altura acrescentando o “Siiiiiiii” da praxe -, o quarteto ofereceu um concerto efeverscente, que incluiu momentos de crowdsurf, canções entoadas em coro – como “Beggin`” -, o clássico momento de semi-strip de Damiano – para mostrar o vasto portfólio de T-Shirts – ou uma invasão pacífica de palco. De um lado, estão os que os consideram a salvação do rock; do outro, quem os aponte como um mero acto de cosmética. A verdade é que, no presente do rock, estes italians do it better. Mammamia.
Fotos
Afonso Batista (Will Buttler + Sister Squares)
Catarina Almeida (Tom Morello)
Super Bock Super Rock (Alice Merton e Måneskin)
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Promotora: Música no Coração
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