Um bom disco de rock n’roll tem de conter alguns elementos essenciais: desde logo uma certa sensação de perigo, uma energia eléctrica e irrequieta, com impacto no sistema nervoso. Depois, um bom sentido de ritmo, aquele balanço que mantém o interesse do princípio ao fim das canções e, necessariamente, do disco como um todo. Por fim, uma produção cuidada, com os arranjos nas medidas certas — destaque particular dado aos riffs de guitarra, claro.
Com este crivo em mente, colocamos em escuta o muito aguardado primeiro disco em nome próprio de Luís Raimundo, agora RAY. O percurso do músico está tão intimamente ligado ao rock como uma guitarra ligada ao amplificador: Raimundo tem uma carreira longa como frontman dos The Poppers e como membro dos Keep Razors Sharp.
Este projecto a solo nasce da necessidade de um espaço criativo próprio, sem expectativas ligadas a bandas anteriores, que permita explorações mais pessoais — um caminho aberto. RAY pôs os pés ao caminho e criou o registo sónico de alguns momentos particularmente agitados da sua vida. O álbum “RAY” (Lux Records, 2022) esteve na gaveta por dois anos, à espera que a pandemia desse tréguas, e no dia 30 de Julho deste ano foi finalmente revelado.
Vejamos então como se porta o disco. O sentimento de risco está bem presente – “Bathtub Stories”, por exemplo, dá a sensação de percorrer uma sinuosa estrada nocturna de prego a fundo – seria a banda sonora perfeita para um noir japonês sobre um grupo de motards a criar sarilhos nas ruas de Tóquio. “Viper’s Tongue”, por sua vez, cria uma atmosfera densa, pastosa, ameaçadora como uma cascavel.
A conjugação da guitarra com os sintetizadores modulares, que surge amiúde neste disco, é uma combinação muito eficaz, a par de uma secção rítmica poderosa. A produção, a cargo do famigerado Paulo “Legendary Tigerman” Furtado, é irrepreensível. Ao longo do álbum, todas as canções soam cristalinas e focadas, com a ênfase nos pontos certos e arranjos muito intuitivos. A referência sonora mais visível será o garage rock dos Queens of The Stone Age, mas RAY consegue distinguir-se e imprimir aos temas uma identidade própria, muito vincada. Exemplo disso é a versão de “This is Love”, o clássico de PJ Harvey, alvo de uma leitura competente e expressiva.
O álbum consegue sempre manter o ímpeto, com ritmos velozes pontuados por canções mais lentas como “Carmel” ou “X”, baladas próximas do registo dramático dos Keep Razors Sharp. No geral, as letras, mais do que contar histórias definidas, servem para desenhar as habituais pulsões contraditórias do rock n’roll: intensidade e leveza, luxúria e raiva, equilíbrio e queda.
Em termos de groove, a pontuação é alta — a urgência de “City Cowboys” e “Morally Dubious”, o início contagiante de “The Night Has To Fall”, o riff pesado e assertivo de “Glory Bound” —, não faltam exemplos de dinâmicas bem construídas, atestando o talento de Ray como escritor e compositor.
“RAY” é um álbum enérgico, temerário e com muito fuzz — exatamente como deve soar um bom disco de rock n’roll.
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